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A Máquina do Tempo

A Máquina do Tempo

Ela estava ali, atrás do arbusto, com algumas ramas escondendo-a entre folhas e gravinas. Se não tivesse adiado a tarefa de aparar o mato cerrado, que domina os fundos do quintal, ela poderia ter sido vista por mais gente. Mas estava ali, intocada, silenciosa e incomunicável. Não emitia som, nem faiscava as centenas de luzes que imaginamos deveria ter. Nem o presumível ninho de fios ou dúzias de alavancas que lhe emprestariam complexidade. Era simples. Simplória.

Confesso que a surpresa de encontrá-la inerte sobre a grama foi menor que a decepção de descobri-la sem o deslumbramento que uma máquina do tempo teria. Senti-me traído. Afinal não é sempre que nossa casa é escolhida para abrigar um portento tecnológico como esse.

Minha maior questão passou a ser não algo como “de onde veio?” ou “de que lugar no tempo?” ou mesmo “quem a inventou?” mas na verdade “que farei com ela?” A resposta me pareceu óbvia. Uma máquina do tempo serve para viagens, obviamente, no tempo. Uma onda de calor e arrepios percorreu-me o corpo e alma. Como usá-la? Inexplicavelmente a máquina tinha apenas um assento e um botão. Como emprestar credibilidade a uma máquina de tempo com um só botão? Um tão sonhado engenho merecia uns badulaques, umas tramelas e penduricalhos a mais para suscitar nossa curiosidade e espantar nosso ceticismo. Mas um mísero botão dava acesso a uma única opção: passado ou futuro.

Deveria ser premido uma única e incômoda vez, levando-nos ou ao passado ou ao futuro. Apenas uma viagem. “Que amarga escolha”, resmunguei. Ambos suspende-nos o fôlego e liberta-nos a imaginação. Quem jamais não desejou com toda intensidade da alma verter ao passado ou singrar velozmente ao futuro? Minhas mãos suavam e tremiam como os gravetos que riscavam a superfície do assento da máquina. “-Uma só opção? Qual seria? Pra que momento da linha do tempo eu seria levado?” Sentei-me sobre o veludo carmim do assento com a respiração sôfrega e interceptada. O ribombar do coração parecia-me o ruído do pêndulo de um imenso relógio de carrilhão. Meus pulsos tiquetaqueavam. Os tímpanos tiniam. Meu quintal, com sua cerca verde por pintar, os ressecados gravetos e alguns pássaros seriam as únicas testemunhas de minha insólita viagem. “Uma só opção? Qual seria? Passado ou futuro?”

É difícil desfrutar do tempo quando se tem seu total controle. É mais fácil apreciá-lo quando ele tem controle sobre nós. Cogitei, de princípio, regressar a linha temporal. Revisitar o passado. Constataria minhas ações no pretérito. Meus cabelos perdendo a palidez, minha pele ganhando seu tônus original, as fendas e riscos de meu rosto abandonando-me. A juventude me invadiria pelas narinas, e seria doce ao meu paladar o vento fresco da manhã de minha vida, mais uma vez provado, pela ação daquela simplória máquina. Meu vigor regressaria uma vez mais, penetrando-me por minha coluna novamente ereta. Lá, no momento passado, retomaria meus planos abandonados, meus engenhos fracassados, e vingaria cada um de meus sonhos despertos. Poderia mais uma vez encontrar as chances que desencontrei, recobrar as oportunidades de que não fiz uso, encarar corajosamente as mesmas condições de outrora, com a superioridade das experiências de então. Rever rostos agora ausentes, recordar amizades já perdidas, voltar a sorver as deliciosas emoções que já desconheço. Trajar inéditas roupas, hoje bolorentas. Retraçar itinerários, reprogramar os encontros das visitas que não fiz. Completar o que ficou parcial, colar o que se partiu, agir de forma a não lamentar perder a oportunidade do perdão não dado. Abraçar intensamente a quem não mais tenho condição de fazê-lo. Então poderia preparar-me um melhor futuro, que hoje é meu presente.

Encontrar melhores soluções, degustar vitórias não alcançadas, usufruir as chances todas. Comparecer em fotos onde ausentei. Fazer as viagens que perdi, confirmar os compromissos que não saldei, e amar mais intensamente a quem eu amo agora. Que viagem fantástica seria! E atemorizante. Se fizesse o que não fiz, visse o que não vi, realizasse o que não efetuei, se fosse o que não fui, talvez não seria mais o que sou agora. Mudaria cristalizadamente o que sou hoje. Uma única mudança no passado e não me sou mais. Seria outro. Ou o mesmo, em outras condições. Piores ou favoráveis. Vivendo uma vida que não mais é minha.

Desisti. Não quero mais viajar ao passado. Não é seguro. Reescrever a história é desfazê-la. E escrever outra. Quero meu script do jeito que está. Asseguro-me de ser quem sou e isso basta. Nunca pensei-me feliz por ser quem sou. É que poderia ser pior. Ficamos como está. Mas o que dizer do futuro? Ah, sim, o futuro vale a pena ser visitado. Pode-se mudar o que não foi escrito. Aperfeiçoa-se o script antes de atuar na cena. Testemunhar aquilo que seremos, sonhos que realizaremos, construções que edificaremos. Vermos nossos pequenos encomendados a seus destinos. Assombrarmo-nos com todas as incríveis descobertas e alcances que a humanidade experimentará.

Ah sim, o futuro é uma empolgante viagem. Mas assustadora. Lá nos aguarda as incógnitas e surpresas nem sempre agradáveis. Ali estará o inesperado de largos braços abertos. Com a boa nova em uma mão e uma possível desventura em outra. No tempo vindouro repousa a dúvida. A interrogação espreita. Ali estará crescentes cabelos brancos. Ali nos encontrarão nossos muitos anos. Ali nos aguarda persistentes rumores de nosso fim de vida.

Nova desistência. Não quero também singrar ao futuro. Não é prudente. Recolhi minha mão. Meu dedo pronto para premir o botão contraiu-se. Respirei mais fundo. Tal como um Janos confuso volto meus dois rostos para o passado e futuro. Aqui onde encontro-me, no rasgo dos dois tempos, é mais seguro.

Mantenho-me inflexível e inabalavelmente ancorado ao tempo. Por um momento considerei que a máquina tinha uma única opção. Ela, na verdade, tem um único botão. Mas duas opções. Uma é: passado ou futuro. A outra é: apertar ou não o botão. Eu já fiz a minha.

Abandono a máquina ao voraz apetite do tempo a devorar-lhe a carcaça em ferrugem e aos tufos de capim a ocultá-la ainda mais. Agora ela confunde-se com os objetos abandonados no jardim. Um chafariz já ressecado, duas calotas de um veículo que não trafega mais, algumas poucas latas de uma tinta que descolorou. Coisas que sofreram as cicatrizes do tempo, como eu.

Volto para casa, triunfante. Há tanto o que fazer hoje… Regresso como se o presente me fosse um bônus. Na realidade ele o é. Um sorriso me escapa. Creio que acertei na escolha. Foi melhor não apertar o botão.


Visite o blog de Marcos Morgado, que nos pesenteou com este belo texto:



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