O Portal Raízes publicou um excelente artigo mostrando a visão de Nabby Clifford, músico ganês radicado no Brasil há mais de 30 anos, na qual ele faz uma análise dos termos “preto” e “negro” no tocante à população afro-descendente. O ponto de vista dele vai te fazer pensar. Segue cópia do conteúdo publicado no Portal Raízes:
Qual o palavra correta para se referir aos afrodescentes, “negro” ou “preto”? Embora a primeira seja usada corriqueiramente, inclusive em documentos oficiais e acadêmicos, para o músico e ativista ganês radicado no Brasil Nabby Clifford, “preto” é o único termo aceitável.
“Um país, o Brasil, usa palavras como lista negra, dia negro, magia negra, câmbio negro, vala negra, mercado negro, peste negra, buraco negro, ovelha negra, a fome negra, humor negro, seu passado negro, futuro negro. Não deveria chamar uma criança de negro (…). Pega o dicionário de língua portuguesa, está escrito: negro quer dizer infeliz, maldito. Brasileiro quando valoriza alguma coisa não fala negro, ele fala preto.”
“Ele não come feijão negro, come feijão preto, o carro dele não é carro negro, o carro dele é carro preto, ele não toma café negro, toma café preto, a fome é negra, quando ganha na loteria, ganha uma nota preta. Se branco não é negativo, preto também não é negativo.
Mas negro não, negro é palavra 100% negativa, e atrasa, isso causa morte, causa miséria, doenças. Já que o mundo mudou, vamos mudar nossa linguagem também”, diz Clifford,neste vídeo. Confira:
Um Pouco de História
Clara Dawn fez uma rápida cronologia sobre a utilização dessas terminologias, segue íntegra do texto dela, que pode ser visto no canal no Youtube do Portal Raízes:
Geneticamente falando, a cor da pele difere entre clara, escura, muito clara, muito escura. Enfim, somos todos claros ou escuros, pertencentes de uma única raça, a humana. E não é a raça que produz o racismo, é o racismo que separa os seres em raças.
Todos os seres humanos modernos compartilham um ancestral em comum que viveu há cerca de 3 milhões de anos na África do Sul, o hominídeo Australopithecus.
Nos últimos anos, a palavra raça desapareceu discretamente dos livros escolares e as antigas classificações foram desacreditadas. Isso aconteceu graças às descobertas da paleontologia, da genética, da etnologia.
No século 18, o botânico sueco Carl von Linné criou o sistema de classificação dos seres vivos – ainda hoje utilizado – e estabeleceu o nome científico de Homo sapiens para a espécie humana. Mas, sem contrariar o pensamento dominante na época, dividiu a humanidade em subespécies de acordo com a cor da pele, o tipo físico e pretensos traços de caráter: os vermelhos americanos, “geniosos, despreocupados e livres”; os amarelos asiáticos, “severos e ambiciosos”; os negros africanos, “ardilosos e irrefletidos”; e os brancos europeus, “ativos, inteligentes e engenhosos”.
É claro que entre um senegalês, um cambojano e um italiano existem, evidentemente, diferenças físicas visíveis: cor da pele e dos olhos, tamanho, textura dos cabelos etc. Mas hoje em dia já sabemos que o patrimônio genético dos três é extremamente próximo. A descoberta dos grupos sanguíneos, da variação das enzimas, das sequências de DNA, dos anticorpos e tantas outras, puseram em evidencia o parentesco dos homens entre si, assim como sua extraordinária diversidade. Uma combinação de genes, frequente numa população e rara em outra, é, assim mesmo, potencialmente presente em toda parte.
A comprovação se deu em 2002, quando uma equipe de sete pesquisadores dos Estados Unidos, França e Rússia comparou 377 partes do DNA de 1056 pessoas originárias de 52 populações de todos os continentes. O resultado mostrou que entre 93% e 95% da diferença genética entre os humanos é encontrada nos indivíduos de um mesmo grupo e a diversidade entre as populações é responsável por 3% a 5%. Ou seja, dependendo do caso, o genoma de um africano pode ter mais semelhanças com o de um norueguês do que com alguém de sua própria cidade na África! O estudo também mostrou que não existem genes exclusivos de uma população, nem grupos em que todos os membros tenham a mesma variação genética.
No século 20, as mitologias nacionalistas foram dominadas pelos clichês, tudo para justificar as políticas colonialistas. O auge desse pensamento foi a ideologia da raça “ariana”, uma tremenda enganação científica, que justificava a eliminação da “anti-raça”, o judeu.
O século 21 fez sua estréia sob a sombra da divisão entre o bem simbolizado por povos ocidentais (americanos e europeus) e o mal personificado pelos povos do oriente. Que as ideias racistas não criem mais nenhuma explicação “científica” para provar mais nada!
Ah, a raça humana, aquela que só se difere das outras raças porque pensa. Pensa mesmo, ambiciosamente, em restringir as riquezas da Terra à minoria dominante em detrimento da maioria que as produzem.
Clara Dawn
Repercussão Inicial
Marcos Sacramento, do Portal Raízes, disse que a repercussão do vídeo provocou elogios mas também dúvidas a respeito de qual palavra seria a mais adequada. Segue íntegra de seu texto:
Uma pesquisa rápida sobre a militância racial permite ver que o termo “negro” e usado amplamente. Coletivos e grupos organizados assumem a palavra no nome e em textos. Por outro lado, é crescente o uso de “preto”, embora a palavra soe estranha a quem está fora da militância.
Em busca de respostas mais consistentes, recorri à amiga e ativista Mirtes Santos, do Coletivo Negrada. “Os negros que não estão no movimento e não compreendem o que o Clifford falou repudiam o ‘preto’, pois a palavra sempre foi usada como forma de agredir a identidade negra. O termo preto está sendo ressignificado”, explica Mirtes.
Contudo, esse processo não implica na repulsa à palavra “negro” nos moldes que os norte-americanos fizeram com “nigger”. A “n-word”, como eles chamam, era usada corriqueiramente, mas com o avanço das lutas dos movimentos pelos direitos civis foi desconstruída a ponto de se tornar tabu.
Talvez isso não venha a acontecer no Brasil, para desgosto de Clifford. O mais provável é que as duas palavras coexistam, porém sem a carga negativa que o racismo estrutural incrustou. Inclusive, expressões como “dia de preto”, “coisa de preto” ou “a coisa está preta” mostram que a palavra “preto” pode sim ser usada para perpetuar conceitos racistas.
E por mais que a palavra seja ressinificada e tenha seu sentido empoderado, dependerá do contexto para transmitir a mensagem completa, como mostram esses dois Tweets que achei enquanto pensava no texto e assistia Lewis Hamilton vencer o GP da Alemanha.
“E mais uma história de um preto que vence! Parabéns Lewis Hamilton…”; “Na boa, nunca vi um preto tão charmoso, deve ser o único também, né, Lewis Hamilton?”.
O primeiro é um exemplo do uso inofensivo e empoderado de “preto”. Já o segundo, nem precisou de termos pejorativos para transbordar racismo.
Outras Referências
Vou deixar aqui para referência outros veículos de comunicação que também produziram conteúdo baseado na afirmação de Clifford:
Portal Último Segundo:
https://ultimosegundo.ig.com.br/colunas/afro-igualdade/2017-06-01/negro-ou-preto.html
Hypeness:
https://www.hypeness.com.br/2016/08/ganes-que-vive-ha-30-anos-no-brasil-explica-porque-se-considera-preto-e-nao-negro/
Portal Quilombhoje:
http://www.quilombhoje.com.br/site/2018/03/16/afro-preto-ou-negro/