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Dois Andares Abaixo do Meu

Dois Andares Abaixo do Meu

Vejam como a jornalista Eliane Brum, colunista da revista Época expressou de forma tão brilhante um problema recorrente no nosso século e que acontecia tão próximo a ela.

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI148941-15230,00-DOIS%20ANDARES%20ABAIXO%20DO%20MEU.html

Eu nunca tinha ouvido falar dela. Vivoo neste edifício de 70 apartamentos há alguns anos. A maioria dos moradores só encontro na reunião de condomínio. Há o velho que toma sol pela manhã e que me cumprimenta sorridente porque lá em casa a gente se dá tchau na janela quando alguém sai. Ele acha curiosíssimo e acompanha o ritual enternecido. Há as mulheres que passeiam com os cachorros, e as que fiscalizam o crescimento das roseiras do jardim. Existe a vizinha que sempre tenta me vender produtos de beleza. E o Pedrão, um aumentativo irônico para um cachorro tão pequeno, tão desmilinguido e cego pela idade, que sobe e desce o elevador comigo, protegendo com olhos erráticos um dono que é quase um gigante. Há o vizinho de passo marcial que não cumprimenta ninguém. E ela, que morava lá havia uma eternidade, mas a quem eu nunca vira.

Numa tarde vêm o chaveiro, os bombeiros e a polícia. Arrombam a porta do apartamento. E somos todos lançados para dentro de uma paisagem muito semelhante à nossa, mas que era dela. As histórias de sua vida me alcançam aos farrapos. Aos 82 anos ela vivia só. Tinha sido médica, com consultório no centro de São Paulo. Era uma mulher independente, que veio do interior para vencer na cidade grande quando as mulheres de sua geração apenas recolhiam os passos até a casa do marido. Viajou o mundo, falava várias línguas, expressas nos livros espalhados pela casa. Não sei de seus amores, ninguém ali sabe. De repente, ela descobriu-se só. Não queria morrer, só não sabia como seguir vivendo. Resistiu viva – morrendo.

Há dois anos ela estacionou sua Brasília vermelha meticulosamente limpa e bem conservada numa vaga tamanho G. E nunca mais a tirou de lá. Poderia ter sido um sinal, mas um sinal só se torna um sinal se for decodificado. Este gerou apenas uma multa do condomínio. O carro deveria estar numa vaga M. Talvez P. Há pouco mais de um ano ela deixou de pagar a conta do condomínio. O acúmulo da dívida virou um processo judicial e uma primeira audiência a qual ela não compareceu. Outra pista não decifrada.

A vizinha do lado percebeu que ela não mais saía de casa. Insistiu com o síndico, com o zelador, algo estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se impregnava no corredor. Mas a lei não escrita da cidade grande determina não perturbar a privacidade de ninguém. Cada um é uma ilha – ou um apartamento. Proprietário-indivíduo de seu número de metros quadrados aéreos no mundo. Os funcionários do condomínio devem avisar pelo interfone quando vão entregar uma correspondência que precisa ser assinada porque, do contrário, muitos moradores sequer abrem a porta. E ela era conhecida como “a doutora”, o título um abismo que ela e tantos se esforçam para cavar. Ninguém ousou perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com ela.

Naquela tarde a conhecida de uma associação onde ela trabalhava como voluntária veio procurá-la, preocupada com seu sumiço. Ela então conseguiu se arrastar e sussurrar que não tinha forças para abrir a porta. Quando a porta caiu, e os fossos foram transpostos, descobriu-se que havia dois meses ela vivia no escuro, à luz de velas primeiro, nada depois. A energia elétrica tinha sido cortada por falta de pagamento. Há semanas ela não comia. Já não podia andar. A doutora estava morrendo de fome em meio a centenas de pessoas na cidade de milhões. Em sua própria sujeira.
Num prédio de classe média de São Paulo, ela estava mais isolada que qualquer ribeirinho dos confins da Amazônia. Não queria que descobrissem que havia perdido o controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, já não teve forças. Imagino quanto desespero sentia para conseguir romper as amarras de toda uma existência, se arrastar até a porta e admitir que não era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora briga para viver.

(continue lendo na postagem original, clicando no link abaixo)

Parabéns Eliane, e que sua história e seu texto sirvam para iluminar nossas vidas.

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