Texto do amigo Márcio Brito Neto mostrando a hipocrisia e preconceito existentes dentro de movimentos que supostamente deveriam lutar por um mundo mais justo e com mais amor:
Vamos falar sério sobre “palmitagem”?
Bom, falarei do “lugar de fala”, que me foi “dado”, como homem negro, nascido em São João de Meriti, baixada-fluminense, criado no subúrbio e no interior do Rio, estudante a vida toda de escola pública; atualmente morador da zona oeste; filho de peixeiro, homem preto “retinto” e de doméstica, mulher nordestina de pele branca; candomblecista, primeiro da família em gerações de pai e mãe a ter o ensino superior. Saído de casa aos 16 anos, para trabalhar e sobreviver na selva que é a sociedade brasileira. Meu privilégio? Talvez a sorte de ter encontrado pessoas boas. Quais cores? Sexualidades? Gêneros? Muitos. Dito isto. Vamos falar de palmitagem?
“Palmitagem” é o “conceito” “militudo”, travestido de militância, que caracteriza e enquadra (algo muito similar ao que fez o branco) homens e mulheres pret@s que se relacionam afetivamente com pessoas lidas como brancas. Partem de um princípio bastante questionável e equivocado sobre “afeto” (atentem que este é o conceito central da minha tese de doutorado) e sobre os princípios eugenistas, aqueles que as instituições e pessoas assumiram “ideologicamente” para clarear a população brasileira.
Bom, em primeiro lugar como podem afirmar que o afeto é uma construção social? Sentimentos e emoções são, mas afeto é algo inerente à natureza humana (vide Espinosa e a filosofia bantu de Natureza e “força”). Logo, afeto é o que Jung chamaria de pulsão e Freud chamaria de ID. Isso não tem controle.
Quando dizem que os (as) palmiteir@s foram cooptados pela ideologia branca, ignoram que se nos relacionamos verdadeiramente com alguém não há espaço para repressão (pelo sentimento), nem modulação (pelas emoções) do afeto. Nos envolvemos afetivamente, logo não tem controle. Uma coisa é o ideal de beleza criado pela sociedade branca, que pode influenciar alguns, mas não se deve tornar isso regra, para analisar as relações entre pessoas. Fosse assim, afeto controlado, nenhum homossexual assumiria sua sexualidade, pois seu afeto pelo mesmo gênero é reprimido socialmente. Ou seja, a gente não escolhe, via de regra, por quem iremos nos envolver afetivamente.
Partindo deste princípio do afeto, nós, pessoas pretas passamos a vida toda tendo que lidar com a repressão e modulação dos nossos afetos, enquanto os brancos podem sair por aí exibindo suas afetividades, quando não são mulheres, nem homossexuais, nem trans. Isso é privilégio de branco, homem cis, heterossexual. Logo, a repressão e modulação é a arma deste grupo contra “minorias”, pois bem. Se esta é a arma deles, qual a lógica de usá-las contra nós mesmos?
Alguns militudos, pseudo-cientistas, “influencer’s” em busca de likes, danam a criticar qualquer coisa, transformando sérios problemas sociais em simplificações vazias de sentido; para população negra, reprimida e modulada a vida toda, isto é muito mais perigoso. Dizer que negros e negras que casaram com brancos e tiveram filhos “mestiços”, estão corroborando com a lógica eugenista é tão fútil que nem caberia resposta. Todavia sou um “palmiteiro”, com filhas, duas filhas “mestiças” e essa briga é minha também.
Para além da minha biografia pessoal, às minhas filhas passo princípios que demovem a ideia de raça, que não encontra na biologia humana relevância científica, mas socialmente causa um estrago nas relações afetivas.
Para além das questões socio-culturais que coincindiu em eu ter duas filhas com mulheres brancas, para além da rejeição das próprias meninas negras ao moleque negro “afeminado”, porque eu era artista e não sustentava os símbolos de “masculinidade” que meninas negras esperavam dos meninos negros na minha época; para além da minha condição socioeconômica, que para as meninas negras da minha época era necessário, pois elas também cresceram na dificuldade e um bom casamento era introjetado na cabeça delas. Enfim, para além dessas complexidades, há a perspectiva do afeto.
Não é criando paradigmas excludentes que se repara as injustiças. Tá na hora dos militudos entenderem que militância vazia é arma pro inimigo. Menos ego, mais razão e principalmente mais AFETO!
Márcio Brito Neto é produtor, roteirista e diretor na Muzenza – O Brado do Tempo, Filho de Nkosi e Ndanda Lunda, pai da Aurora e da Ayla. O resto é construção…
Ainda contra a falsa militância, porém nesse caso o que eu chamaria de militância tóxica Márcio foi cobrado pelo fato de haver predominância de pessoas “brancas” na produção de um filme documentário que ele está dirigindo. A resposta dele foi contundente e muito esclarecedora. Segue:
Fui questionado sobre o porquê a ficha técnica do meu filme tem brancos e porquê a produtora do meu filme é uma “produtora branca”. Existem alguns fatores aí, mas posso destacar dois: primeiro que formei minha equipe quando não tinha recurso nenhum pra executar meu primeiro longa, quem topou a ideia do filme e abraçou o projeto? Sim, essas pessoas brancas.
Não foi falta de convite às pessoas pretas. Assim como no primeiro filme a mesma coisa se repetiu. Apresentei o projeto, mas cagaram ou me cobraram valores que não tenho como pagar.
Somado a isso, estou há um ano no doutorado e a minha decepção até aqui foram com 6 pessoas negras. Isso mesmo SEIS. Um doutor que ao me fazer um convite pra tapar buraco num evento não exitou em ficar horas falando comigo, fiz um pedido recente fui ignorado com fé. Quem atendeu meu chamado? Pessoas brancas e um negro, felizmente genial.
Convidei outra doutora negra, no primeiro momento não fui ignorado, porém no segundo momento, atrapalhando o planejamento de um projeto importante, pois não cumpriu o acordado.
Os outros dois, um fez a pergunta primeira, que gerou esse texto, ao ser respondido, também ignorou. A outra uma brilhante profissional negra que convidei, ficou de me passar valores para assumir meu projeto, bom, aguardo até hoje. Minha pesquisa é sobre o cinema negro, ja pedi gentilmente listas de um determinado festival, isso há um ano, para dois negros diferentes, fui ignorado? Não tenha dúvidas disso.
Por que na minha equipe só tem branco? Foi por escolha minha? Num campo de disputas nem todos os agentes somam, tem uma grande parte que se sente ameaçado pela presença de outros. Um dia trabalharei com pessoas majoritariamente negras, qual dia? Quando me respeitarem como as respeito. Era só isso mesmo. Bom dia!
E, para encerrar, quero deixar claro que acho importante a existência dos movimentos que defendem o direito das pessoas de raça negra, que realmente sofrem com o preconceito institucional existente em nossa sociedade. E se você discorda do que acabei de dizer, assista a esse vídeo curto, apenas dois minutos: