Crônica bem humorada de Ricardo Freire para a Revista Época a respeito do mundo digital que vivemos.
Ah, como eu gostaria de ser apenas um número. Sim, porque atualmente eu sou – perdão – inúmeros.
Toda vez que alguma máquina, voz gravada ou pessoa de carne e osso me ordena ‘Digite sua senha’, eu entro em pânico. Qual delas? A senha do cartão ou a senha eletrônica? A que eu inventei ou a que me mandaram pelo correio? A de quatro dígitos com código de segurança de mais três dígitos, ou a de oito dígitos com código de segurança de quatro dígitos e meio? Aquela em que eu embaralhei o telefone da sogra ou a outra em que eu juntei a placa do carro com o apartamento do vizinho e dividi por 2?
Alguns bancos são tão indelicados que, depois de pedir duas senhas e o código de segurança, ainda fazem perguntas de foro íntimo, como a sua data de nascimento. Isso é coisa que se pergunte a uma cliente? Tenho amigas que não confessam a idade nem mesmo a um caixa eletrônico.
Não admira que pessoas crescidas não saibam mais a tabuada: toda a nossa memória para números está ocupada por dezenas de senhas e códigos de segurança. Eventualmente, de tanto preencher cadastro e conversar com atendentes de telemarketing, você acaba decorando até mesmo o seu CPF – o que pode ter conseqüências trágicas. Só mais tarde é que você vai descobrir que o seu cérebro gravou o CPF por cima de números muito mais importantes, apagando da memória o seu aniversário de casamento e a série em que o seu filho caçula está na escola.
Telefones, pelo menos, ninguém mais precisa decorar: estão todos na agenda do celular. Só que daí você compra um aparelho mais moderno e o que acontece? Continua carregando o antigo, agora na função de agenda telefônica. A propósito, de que adianta tanta modernidade, se ficou muito mais complicado fazer um DDD? Antigamente era automático. Hoje você precisa parar tudo, respirar fundo e fazer um grande esforço de concentração para colocar o código da operadora exatamente no lugarzinho certo, sem se atrapalhar com o resto do número. Mas é bom não reclamar, senão daqui a pouco eles vêm e inventam uma gravação: ‘Bem-vindo à operadora X. Digite sua senha’.
Por mais que a gente tente dar uma de espertinho, é impossível usar a mesma senha em todos os lugares. Os computadores exigem que se cadastrem senhas diferentes para isso ou aquilo. Umas precisam ter quatro, outras seis, outras oito dígitos. Daqui a pouco vai ter senha com raiz quadrada, senha com logaritmo e senha com dízima periódica. O número de senhas que uma pessoa comum precisa decorar é tão absurdo que já existem programas para computadores de bolso que armazenam todas as suas senhas, devidamente criptografadas. Mas é claro que, para ter acesso a elas, você precisa de… mais uma senha.
Não adianta: as senhas vieram para ficar. O jeito é ir se preparando para o pior. Qual é o código de segurança do seu mês de nascimento? Não vá se esquecer do código da operadora da sua identidade! Por favor, digite a data de aniversário da sua senha.