INTRODU\u00c7\u00c3O<\/strong><\/p>\nA frase \u201ceu discordo do que dizes, mas defenderei at\u00e9 a morte o teu direito de diz\u00ea-lo\u201d [1] talvez seja a melhor defini\u00e7\u00e3o para a liberdade de express\u00e3o [2] . Afinal, \u00e9 muito f\u00e1cil reconhecer a liberdade de express\u00e3o \u00e0s ideias que concordamos; muito mais dif\u00edcil \u00e9 aceitar a manifesta\u00e7\u00e3o de ideias que desgostamos.<\/p>\n
O que se tem visto no Brasil nos \u00faltimos tempos, no entanto, \u00e9 uma crescente vontade de reprimir formas de express\u00e3o que sejam consideradas desrespeitosas e preconceituosas. A iniciativa, embora tenha como pano de fundo uma inten\u00e7\u00e3o nobre, tem gerado situa\u00e7\u00f5es desproporcionais, limitando o direito \u00e0 livre express\u00e3o e violando a Constitui\u00e7\u00e3o Federal.<\/p>\n
Um exemplo recente \u00e9 o do cantor Alexandre Pires, que est\u00e1 sendo investigado pelo Minist\u00e9rio P\u00fablico Federal por uma acusa\u00e7\u00e3o de racismo. A den\u00fancia se deu pelo fato de o cantor ter gravado um videoclipe em que uma festa \u00e9 invadida por v\u00e1rios homens fantasiados como macacos \u2013 inclusive o pr\u00f3prio cantor. Segundo reportagem do jornal O Globo, o videoclipe foi considerado como \u201cde \u2018conte\u00fado racista e sexista, comprometendo as lutas do movimento negro na supera\u00e7\u00e3o do racismo, e das mulheres na supera\u00e7\u00e3o do sexismo\u2019 e que \u2018combinando artistas e atletas, o v\u00eddeo utiliza clich\u00eas e estere\u00f3tipos contra a popula\u00e7\u00e3o negra\u2019\u201d [3] .<\/p>\n
Este n\u00e3o \u00e9 um caso isolado, mas apenas um exemplo de uma tend\u00eancia. Outro exemplo que pode ser citado \u00e9 o caso do escritor Siedfrieg Ellwanger, condenado pela pr\u00e1tica de racismo por ter escrito um livro em que questionava a veracidade do Holocausto [4] . O livro levou seu autor \u00e0 pris\u00e3o mesmo que em nenhuma de suas p\u00e1ginas houvesse alguma forma de incita\u00e7\u00e3o \u00e0 pr\u00e1tica de algum crime contra judeus ou qualquer outra ra\u00e7a.<\/p>\n
A tend\u00eancia demonstrada por esses exemplos \u00e9 a de limita\u00e7\u00e3o da liberdade de express\u00e3o daquilo que n\u00e3o seja considerado politicamente correto. Tal tend\u00eancia n\u00e3o se revela apenas na liberdade de express\u00e3o, mas em diversos aspectos do Direito e na atividade estatal em geral.<\/p>\n
Em 2004, por exemplo, o Governo Federal lan\u00e7ou uma cartilha intitulada Cartilha do Politicamente Correto & Direitos Humanos, que trazia express\u00f5es lingu\u00edsticas consideradas inadequadas, como \u2018beata\u2019 e \u2018funcion\u00e1rio p\u00fablico\u2019, e recomendava \u00e0 popula\u00e7\u00e3o que n\u00e3o as utilizasse.<\/p>\n
A situa\u00e7\u00e3o chegou ao ponto de um deputado federal propor uma lei que tornaria contraven\u00e7\u00e3o penal o ato de impedir empregados de utilizar elevadores sociais em condom\u00ednios privados.<\/p>\n
Todas essas limita\u00e7\u00f5es ou tentativas de limita\u00e7\u00f5es do livre-arb\u00edtrio s\u00e3o provenientes de um movimento que na realidade n\u00e3o \u00e9 novo, mas que foi se modificando ao longo do tempo at\u00e9 se tornar o que hoje entendemos como politicamente correto.<\/p>\n
O presente trabalho visa, em primeiro lugar, analisar a liberdade de express\u00e3o, desde seu sentido pol\u00edtico-filos\u00f3fico, analisando sua import\u00e2ncia para a vida particular, bem como para a coletividade, ao sentido t\u00e9cnico-jur\u00eddico, analisando sua natureza jur\u00eddica e de que forma \u00e9 protegida pela Constitui\u00e7\u00e3o e legisla\u00e7\u00e3o p\u00e1tria.<\/p>\n
Ademais, ser\u00e3o analisados os limites \u00e0 liberdade de express\u00e3o e os conflitos com as demais disposi\u00e7\u00f5es constitucionais, a partir da an\u00e1lise das teorias p\u00f3s-positivistas sobre os conflitos entre normas jur\u00eddicas.<\/p>\n
Em seguida, pretende-se conceituar o que \u00e9 o politicamente correto, estudando suas origens, e demonstrar, por meio de exemplos, de que forma tem influenciado o Brasil, em especial nos atos dos tr\u00eas poderes republicanos: executivo, legislativo e judici\u00e1rio.<\/p>\n
Por fim, o trabalho vertente busca analisar o confronto entre o direito \u00e0 livre express\u00e3o e o politicamente correto, fazendo distin\u00e7\u00e3o entre quest\u00f5es atinentes ao gosto pessoal e quest\u00f5es atinentes ao direito e analisando a prote\u00e7\u00e3o constitucional \u00e0 express\u00e3o de ideias repulsivas e aos discursos de \u00f3dio.<\/p>\n
Assim, pretende-se concluir se o politicamente correto \u00e9 uma forma leg\u00edtima de limitar o direito \u00e0 manifesta\u00e7\u00e3o do pensamento e se este \u00e9 eficaz no fim que se prop\u00f5e.<\/p>\n
1 A LIBERDADE DE EXPRESS\u00c3O<\/strong><\/p>\n1.1 O valor democr\u00e1tico da Liberdade de Express\u00e3o<\/strong><\/p>\nDesde a antiguidade o homem busca limitar o poder do governo. Nos tempos antigos, isso ocorria por estar o governo em posi\u00e7\u00e3o antag\u00f4nica a do povo, visto que era concedido todo poder ao Estado em troca de prote\u00e7\u00e3o. Assim, houve um tempo em que a liberdade \u201csignificava prote\u00e7\u00e3o contra a tirania dos governantes pol\u00edticos\u201d [5] .<\/p>\n
Com o desenvolvimento de novas formas de governos ao longo da hist\u00f3ria \u2013 em especial a democracia -, a ideia de liberdade como limita\u00e7\u00e3o do poder do governante passou a ser tamb\u00e9m a ideia de limita\u00e7\u00e3o do poder do povo sobre si pr\u00f3prio.<\/p>\n
\nA ideia de que o povo n\u00e3o tem qualquer necessidade de limitar o seu poder sobre si mesmo poderia parecer evidente quando o governo popular era uma coisa sobre o qual apenas se sonhava, ou que se lia que tinha existido num per\u00edodo remoto do passado [6] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Em verdade, a preserva\u00e7\u00e3o da liberdade do indiv\u00edduo torna-se ainda mais necess\u00e1ria em sociedades governadas pelo pr\u00f3prio povo. Caso contr\u00e1rio, h\u00e1 o risco de a democracia tornar-se uma ditadura da maioria, tirania t\u00e3o perversa quanto aquelas que se buscou evitar com a ascens\u00e3o do povo ao seu pr\u00f3prio governo. Tal ressalva j\u00e1 era feita por Alexis de Tocqueville no in\u00edcio do s\u00e9culo XIX, ao analisar a democracia nos Estados Unidos:<\/p>\n
\nConsidero \u00edmpia e detest\u00e1vel a m\u00e1xima de que, em mat\u00e9ria de governo, a maioria do povo tem o direito de fazer tudo;<\/p>\n
[\u2026]<\/p>\n
Quando vejo concederem o direito e a faculdade de fazer tudo a uma for\u00e7a qualquer, seja ela chamada povo ou rei, democracia ou aristocracia, seja ela exercida numa monarquia ou numa rep\u00fablica, digo: a\u00ed est\u00e1 o germe da tirania [7] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
John Stuart Mill, em sua cl\u00e1ssica obra Sobre a Liberdade<\/em>, exp\u00f5e o tema desta forma:<\/p>\n\nA vontade do povo significa, na pr\u00e1tica, a vontade da parte <\/em>mais numerosa ou ativa do povo: a maioria, ou aqueles que conseguem fazer-se aceitar como a maioria; consequentemente, o povo pode desejar oprimir uma parte do povo; e s\u00e3o t\u00e3o necess\u00e1rias precau\u00e7\u00f5es contra isso como contra quaisquer outros abusos de poder [8] .<\/p>\n<\/blockquote>\nE conclui da seguinte maneira:<\/p>\n
\n\u00c9 necess\u00e1ria prote\u00e7\u00e3o contra a tirania da opini\u00e3o e do sentimento dominantes; contra a tend\u00eancia da sociedade para impor, por outros meios que n\u00e3o as puni\u00e7\u00f5es civis, as suas pr\u00f3prias ideias e pr\u00e1ticas como regras de conduta \u00e0queles que n\u00e3o as seguem, e para restringir o desenvolvimento \u2013 e, se poss\u00edvel, impedir a forma\u00e7\u00e3o \u2013 de qualquer individualidade que n\u00e3o esteja em harmonia com os seus costumes, e para for\u00e7ar todas as personalidades a modelarem-se \u00e0 imagem da sociedade [9] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Alan Dershowitz, em sua obra Rights from Wrongs<\/em>, tamb\u00e9m alerta que as maiores crises em uma democracia ocorrem justamente quando a maioria tenta limitar os direitos da minoria:<\/p>\n\nAs maiores crises para uma democracia constitucional ocorrem quando a maioria exige que alguns direitos das minorias sejam limitados em nome de prefer\u00eancias fortemente arraigadas ou reinvindica\u00e7\u00f5es de necessidade. O conflito entre o poder de muitos e os direitos de poucos suscita as quest\u00f5es mais profundas sobre a nossa teoria de governo [10]<\/p>\n<\/blockquote>\n
Com o advento do constitucionalismo moderno [11] , buscou-se preservar a liberdade por meio de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, leciona Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto:<\/p>\n
\nAs liberdades constitucionais visam a proteger indiv\u00edduos e institui\u00e7\u00f5es contra a tirania da maioria, conferindo-lhes direitos de agir que de outro modo poderiam ser legalmente negados ou restringidos para al\u00e9m do que possa ser admitido pela Constitui\u00e7\u00e3o [12] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Alan Dershowitz exp\u00f5e ideia equivalente, ao tratar da Bill of Rights<\/em> [13] americana:<\/p>\n\nAo longo da nossa hist\u00f3ria de democracia constitucional, esfor\u00e7os t\u00eam sido feitos periodicamente para justificar restri\u00e7\u00f5es da minoria por meio da influ\u00eancia da maioria. Embora nenhuma das vertentes tenha ganho aceita\u00e7\u00e3o universal, o consenso geral foi de que a experi\u00eancia constitucional \u2013 na verdade uma s\u00e9rie de experi\u00eancias em constante mudan\u00e7a \u2013 tem funcionado. A experi\u00eancia tem mostrado que as maiores amea\u00e7as \u00e0 nossa liberdade t\u00eam vindo de maiorias passageiras intolerantes aos direitos das minorias [\u2026].Nossa Bill of Rights tem fornecido prote\u00e7\u00e3o n\u00e3o t\u00e3o perfeita contra esses excessos, mas tem contribu\u00eddo para a preven\u00e7\u00e3o da tirania popular [\u2026] A Bill of Rights pode ser melhor vista como uma ap\u00f3lice de seguro contra a tirania [14] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Nesse contexto de prote\u00e7\u00e3o constitucional \u00e0 liberdade, se inserem, na realidade, diversas liberdades, dentre as quais a liberdade de express\u00e3o do pensamento.<\/p>\n
Segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, ainda que em sentido po\u00e9tico, a \u201cliberdade de express\u00e3o \u00e9 a maior express\u00e3o da liberdade\u201d [15] . Sendo a preserva\u00e7\u00e3o da liberdade elemento necess\u00e1rio a impedir que a democracia se torne tirania da maioria, a liberdade de expressar uma opini\u00e3o divergente da maioria \u00e9 um valor fundamental a ser protegido.<\/p>\n
Segundo Manoel Gon\u00e7alves Ferreira Filho, a liberdade de express\u00e3o \u00e9 \u201cuma das principais de todas as liberdades humanas por ser a palavra uma das caracter\u00edsticas fundamentais do homem, o meio por que este transmite e recebe li\u00e7\u00f5es da civiliza\u00e7\u00e3o\u201d [16] .<\/p>\n
Extrai-se ainda da li\u00e7\u00e3o de Gilmar Mendes:<\/p>\n
\nO argumento democr\u00e1tico acentua que \u201co autogoverno postula um discurso pol\u00edtico protegido das interfer\u00eancias do poder\u201d. A liberdade de express\u00e3o \u00e9, ent\u00e3o, enaltecida como instrumento para o funcionamento e preserva\u00e7\u00e3o do sistema democr\u00e1tico (o pluralismo de opini\u00f5es \u00e9 vital para a forma\u00e7\u00e3o de vontade livre)\u201d [17] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Assim, a liberdade de express\u00e3o \u201cn\u00e3o \u00e9 um elemento circunstancial da democracia, mas \u00e9 a sua pr\u00f3pria ess\u00eancia. O conceito de autogoverno ou de soberania popular \u00e9 impratic\u00e1vel se os cidad\u00e3os n\u00e3o tiverem o direito de falar e ouvir livremente\u201d [18] .<\/p>\n
1.2 O valor coletivo da Liberdade de Express\u00e3o<\/strong><\/p>\nA liberdade de express\u00e3o \u00e9 em ess\u00eancia um valor individual, um direito que cada cidad\u00e3o tem de expressar suas opini\u00f5es e pensamentos. Todavia, n\u00e3o se podem olvidar os benef\u00edcios \u00e0 coletividade de ser assegurada tal liberdade, o que a torna ainda mais valiosa \u00e0 democracia.<\/p>\n
Em primeiro lugar, porque a liberdade para expressar opini\u00f5es que dissintam da maioria \u00e9 fundamental para o desenvolvimento e progresso da sociedade, pois o progresso s\u00f3 ocorre quando surgem novas ideias. Caso as ideias da maioria fossem consideradas imut\u00e1veis e inquestion\u00e1veis, a humanidade estaria at\u00e9 os dias atuais acreditando que a Terra \u00e9 quadrada e que o Sol gira em torno dela.<\/p>\n
Na realidade, o conflito de ideias \u00e9 algo extremamente ben\u00e9fico para a humanidade, pois o choque entre teses divergentes costuma ser extremamente positivo, havendo grande possibilidade de gerar uma tese resultante que carrega o que havia de melhor nas duas anteriores, deixando seus v\u00edcios para tr\u00e1s.<\/p>\n
Ideia semelhante \u00e9 a trazida por John Stuart Mill:<\/p>\n
\nO mal particular em silenciar a express\u00e3o de uma opini\u00e3o \u00e9 que constitui um roubo \u00e0 humanidade: \u00e0 posteridade, bem como \u00e0 gera\u00e7\u00e3o atual; \u00e0queles que discordam da opini\u00e3o, mais ainda do que \u00e0queles que a sustentam. Se a opini\u00e3o for correta, ficar\u00e3o privados da oportunidade de trocar o erro por verdade; se estiver errada, perdem uma impress\u00e3o mais clara e viva da verdade [19] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
No mesmo sentido \u00e9 a li\u00e7\u00e3o de Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto:<\/p>\n
\nUm regime constitucional que favore\u00e7a \u00e0 livre express\u00e3o e discuss\u00e3o habilitaria indiv\u00edduos e comunidades a substituir concep\u00e7\u00f5es err\u00f4neas longamente acreditadas, bem como a testar e revitalizar verdades que, do contr\u00e1rio, n\u00e3o passariam de dogmas mortos [20] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
N\u00e3o menos valiosa \u00e0 coletividade \u00e9 a liberdade de criticar o governo e a atua\u00e7\u00e3o do Estado. Assim, a liberdade de express\u00e3o n\u00e3o \u00e9 prote\u00e7\u00e3o apenas do indiv\u00edduo contra o poder estatal, mas de toda a coletividade.<\/p>\n
\nNa l\u00f3gica do sistema, a liberdade de express\u00e3o cumpre fun\u00e7\u00f5es cruciais: permitir que os eleitores fa\u00e7am escolhas informadas nas elei\u00e7\u00f5es a partir da ampla discuss\u00e3o entre os candidatos; que as pessoas possam influenciar as escolhas das pol\u00edticas governamentais; que as autoridades p\u00fablicas sejam submetidas a cr\u00edticas que podem levar \u00e0 sua substitui\u00e7\u00e3o; que o abuso de poder e os atos de corrup\u00e7\u00e3o sejam denunciados ou prevenidos pelo receio de sua revela\u00e7\u00e3o [21] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Gilmar Mendes apresenta ideia similar em sua obra:<\/p>\n
\nUm outro argumento, que j\u00e1 foi rotulado como c\u00e9tico, formula-se dizendo que \u201ca liberdade de criticar os governantes \u00e9 um meio indispens\u00e1vel de controle de uma atividade [a pol\u00edtica] que \u00e9 t\u00e3o interesseira e ego\u00edsta como a de qualquer outro agente social\u201d [22] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Por fim, importante ressaltar o car\u00e1ter educativo da liberdade de express\u00e3o para a vida em sociedade, estabelecendo a civilidade entre os cidad\u00e3os por meio do respeito \u00e0s ideias diferentes.<\/p>\n
\nSe a liberdade de express\u00e3o tem por fundamento ensinar e difundir a toler\u00e2ncia \u00e9 porque se pressup\u00f5e que uma sociedade tolerante seja desej\u00e1vel. A no\u00e7\u00e3o de que a toler\u00e2ncia \u00e9 um valor a implementar assenta, em primeiro lugar, sobre a premissa de que a consci\u00eancia individual \u00e9 simplesmente incoerc\u00edvel. Pretender domin\u00e1-la n\u00e3o pode pertencer \u00e0s atribui\u00e7\u00f5es do poder pol\u00edtico porque sequer se trata de algo realiz\u00e1vel na pr\u00e1tica.<\/p>\n
[\u2026]<\/p>\n
Se a for\u00e7a \u00e9 v\u00e3 e ineficaz para constranger a consci\u00eancia, o seu emprego acabar\u00e1 por suscitar a resist\u00eancia dos convictos de suas opini\u00f5es e, em vez de harmonia e conc\u00f3rdia, suceder\u00e3o revoltas, talvez sangrentas [23] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Assim, conclui-se que a liberdade de express\u00e3o tem valor coletivo por ser um instrumento, inclusive, de manuten\u00e7\u00e3o da paz social.<\/p>\n
1.3 A Liberdade de Express\u00e3o como liberdade positiva<\/strong><\/p>\nEm sentido pol\u00edtico-filos\u00f3fico, \u00e9 poss\u00edvel concluir que a liberdade de express\u00e3o \u00e9, em suma, a prote\u00e7\u00e3o da express\u00e3o de ideias contra a tirania da maioria. Contudo, necess\u00e1rio conceitu\u00e1-la tamb\u00e9m em seu sentido t\u00e9cnico-jur\u00eddico.<\/p>\n
Norberto Bobbio, em sua cl\u00e1ssica obra Liberdade e Igualdade, divide as liberdades em liberdade negativa e liberdade positiva [24] . Segundo o autor, liberdade negativa \u00e9 \u201ca situa\u00e7\u00e3o na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de n\u00e3o agir sem ser obrigado, por outros sujeitos\u201d [25] . Ou seja, \u00e9 liberdade decorrente de aus\u00eancia de obriga\u00e7\u00e3o ou proibi\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
Por seu turno, a liberdade positiva \u00e9 \u201ca situa\u00e7\u00e3o na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar o seu pr\u00f3prio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decis\u00f5es, sem ser determinado pelo querer de outros. Essa forma de liberdade \u00e9 tamb\u00e9m chamada de autodetermina\u00e7\u00e3o<\/em> ou, ainda mais propriamente, de autonomia<\/em>\u201d [26] . Este conceito, no entanto, em sentido abstrato, \u00e9 de maior complexidade \u00e0 compreens\u00e3o, pois como o pr\u00f3prio Bobbio alerta, \u201csendo liberdade <\/em>um termo que indica, na multiplicidade de suas acep\u00e7\u00f5es pr\u00f3prias, falta de algo \u2013 a express\u00e3o liberdade positiva <\/em>\u00e9 contradit\u00f3ria\u201d [27] .<\/p>\nTal conceito ganha forma quando se analisa o Direito por uma perspectiva constitucional. Como forma de assegurar rigidez normativa a certas liberdades consideradas de especial valor, as democracias constitucionais estabelecem em suas constitui\u00e7\u00f5es permiss\u00f5es gen\u00e9ricas para determinadas a\u00e7\u00f5es, n\u00e3o estando sujeitas assim \u00e0s aus\u00eancias de proibi\u00e7\u00e3o ou obriga\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
Kelsen exp\u00f5e esta ideia da seguinte forma:<\/p>\n
\nNo entanto, esta esfera de liberdade apenas pode ser considerada como juridicamente garantida \u2013 conforme j\u00e1 pusemos em relevo \u2013 na medida em que a ordem jur\u00eddica pro\u00edba intrus\u00f5es nela. Sob este aspecto, t\u00eam uma especial import\u00e2ncia pol\u00edtica as chamadas liberdades constitucionalmente garantidas. Trata-se de preceitos de Direito constitucional atrav\u00e9s dos quais a compet\u00eancia do \u00f3rg\u00e3o legislativo \u00e9 limitada por forma a n\u00e3o lhe ser permitido \u2013 ou apenas o ser sob condi\u00e7\u00f5es muito especiais \u2013 editar normas que prescrevam ou pro\u00edbam aos indiv\u00edduos uma conduta de determinada esp\u00e9cie, como a pr\u00e1tica da religi\u00e3o, a express\u00e3o de opini\u00f5es e outras condutas an\u00e1logas [28] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto explica o tema de maneira similar:<\/p>\n
\nNesses casos, a liberdade de praticar determinadas a\u00e7\u00f5es n\u00e3o \u00e9 uma consequ\u00eancia indireta da aus\u00eancia de proibi\u00e7\u00f5es e mandamentos no n\u00edvel da lei infraconstitucional, mas de permiss\u00f5es constitucionais especiais que d\u00e3o lugar \u00e0s liberdades constitucionais.<\/p>\n
As liberdades, pois, podem ser legais e constitucionais e se exprimem por meio de uma autoriza\u00e7\u00e3o normativa de agir, negativa ou positiva. [\u2026] No caso das segundas (liberdades constitucionais), para agir (ou deixar de agir) conforme e nos limites das permiss\u00f5es constitucionais especiais [29] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Assim, a liberdade de express\u00e3o, entendida como direito de exprimir pensamentos dissonantes da maioria, s\u00f3 tem prote\u00e7\u00e3o como liberdade positiva constitucional. Caso contr\u00e1rio, sempre que fosse proibida uma determinada forma de express\u00e3o, essa poderia ser considerada decis\u00e3o da maioria por meio do legislador, representante eleito pela maioria.<\/p>\n
Nesse sentido \u00e9 a li\u00e7\u00e3o de Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto:<\/p>\n
\nUma observa\u00e7\u00e3o necess\u00e1ria \u00e9 a de que, para realmente proteger a liberdade de express\u00e3o, a democracia tem que ser compreendida no contexto do estado constitucional. [\u2026] Uma no\u00e7\u00e3o de democracia aplicada a um modelo de Estado puramente legislativo de direito seria totalmente ineficaz. Sempre que a lei ordin\u00e1ria proibisse ou restringisse determinadas comunica\u00e7\u00f5es, poder-se-ia argumentar que se trata de uma decis\u00e3o da maioria e, nessa medida, v\u00e1lida por ser formalmente conforme a regra do jogo democr\u00e1tico [30] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Destarte, para n\u00e3o estar sempre sujeita ao crivo da maioria \u2013 condi\u00e7\u00e3o que justamente se busca evitar com a prote\u00e7\u00e3o da liberdade de express\u00e3o \u2013, a livre express\u00e3o do pensamento deve ser prevista constitucionalmente como liberdade positiva.<\/p>\n
1.4 A Liberdade de Express\u00e3o como direito fundamental<\/strong><\/p>\nSendo a liberdade prote\u00e7\u00e3o do indiv\u00edduo contra a opress\u00e3o da maioria, \u00e9 natural que as na\u00e7\u00f5es modernas, preocupadas em estabelecer garantias constitucionais \u00e0s liberdades, tenham dado especial aten\u00e7\u00e3o \u00e0 liberdade de express\u00e3o.<\/p>\n
Diversas foram as formas pelas quais as Constitui\u00e7\u00f5es asseguraram o direito \u00e0 livre express\u00e3o do pensamento. Como exemplo, temos a famosa Primeira Emenda \u00e0 Constitui\u00e7\u00e3o dos Estados Unidos, que de maneira sucinta, veda ao Estado estabelecer leis que diminuam a liberdade de express\u00e3o:<\/p>\n
\nO congresso n\u00e3o deve fazer leis a respeito de se estabelecer uma religi\u00e3o, ou proibir o seu livre exerc\u00edcio; ou diminuir a liberdade de express\u00e3o, ou da imprensa; ou sobre o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas repara\u00e7\u00f5es por ofensas [31] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
A Constitui\u00e7\u00e3o de Portugal, por seu turno, n\u00e3o previu a liberdade de express\u00e3o como limita\u00e7\u00e3o ao exerc\u00edcio do Estado, mas como direito do cidad\u00e3o, em seu art. 38\u00ba, in verbis<\/em>:<\/p>\n\nTodos t\u00eam o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discrimina\u00e7\u00f5es [32] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
A Constitui\u00e7\u00e3o brasileira de 1988, por sua pr\u00f3pria caracter\u00edstica anal\u00edtica [33] , tratou o direito \u00e0 liberdade de express\u00e3o de maneira mais extensa, em dispositivos esparsos. Extrai-se da li\u00e7\u00e3o de Jos\u00e9 Afonso da Silva:<\/p>\n
\nA liberdade de comunica\u00e7\u00e3o <\/em>consiste num conjunto de direitos, formas, processos e ve\u00edculos, que possibilitam a coordena\u00e7\u00e3o desembara\u00e7ada da cria\u00e7\u00e3o, express\u00e3o e difus\u00e3o do pensamento e da informa\u00e7\u00e3o. \u00c9 o que se extrai dos incisos IV, V, IX, XII e XIV do art. 5\u00ba combinados com os arts. 220 e 224 da Constitui\u00e7\u00e3o [34] .<\/p>\n<\/blockquote>\nO art. 5\u00ba, IX, estabelece que \u201c\u00e9 livre a express\u00e3o da atividade intelectual, art\u00edstica, cient\u00edfica e de comunica\u00e7\u00e3o, independentemente de censura ou licen\u00e7a\u201d [35] . O inciso IV do mesmo artigo disp\u00f5e que \u201c\u00e9 livre a manifesta\u00e7\u00e3o do pensamento, sendo vedado o anonimato\u201d [36] .<\/p>\n
A Constitui\u00e7\u00e3o Brasileira ainda assegura a liberdade de consci\u00eancia (art. 5\u00ba, VI) e veda a priva\u00e7\u00e3o de direitos por cren\u00e7a religiosa ou convic\u00e7\u00e3o filos\u00f3fica ou pol\u00edtica (art. 5\u00ba, VIII).<\/p>\n
Impende tamb\u00e9m citar o art. 220, que traz disposi\u00e7\u00e3o similar \u00e0 Primeira Emenda americana: \u201cA manifesta\u00e7\u00e3o do pensamento, a cria\u00e7\u00e3o, a express\u00e3o e a informa\u00e7\u00e3o, sob qualquer forma, processo ou ve\u00edculo n\u00e3o sofrer\u00e3o qualquer restri\u00e7\u00e3o, observado o disposto nesta Constitui\u00e7\u00e3o\u201d [37] .<\/p>\n
Devido \u00e0 import\u00e2ncia da preserva\u00e7\u00e3o da livre express\u00e3o do pensamento para a plenitude democr\u00e1tica, a Constitui\u00e7\u00e3o brasileira elenca este direito entre o seu rol de direitos fundamentais.<\/p>\n
Jos\u00e9 Afonso da Silva conceitua os direitos fundamentais da seguinte maneira:<\/p>\n
\nNo n\u00edvel do direito positivo<\/em>, aquelas prerrogativas e institui\u00e7\u00f5es que ele concretiza em garantia de uma conviv\u00eancia digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais<\/em> acha-se a indica\u00e7\u00e3o de que se trata de situa\u00e7\u00f5es jur\u00eddicas sem as quais a pessoa humana n\u00e3o se realiza, n\u00e3o convive e, \u00e0s vezes, nem mesmo sobrevive [38] .<\/p>\n<\/blockquote>\nGilmar Mendes, de maneira mais sucinta, descreve os direitos fundamentais como \u201cpretens\u00f5es que, em cada momento hist\u00f3rico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana\u201d [39] .<\/p>\n
Alexandre de Moraes, por seu turno, apresenta a seguinte defini\u00e7\u00e3o:<\/p>\n
\nOs direitos humanos fundamentais, em sua concep\u00e7\u00e3o atualmente conhecida, surgiram como produto da fus\u00e3o de v\u00e1rias fontes, desde tradi\u00e7\u00f5es arraigadas nas diversas civiliza\u00e7\u00f5es, at\u00e9 a conjuga\u00e7\u00e3o dos pensamentos filos\u00f3fico-jur\u00eddicos, das id\u00e9ias surgidas com o cristianismo e com o direito natural.<\/p>\n
Essas id\u00e9ias encontravam um ponto fundamental em comum, a necessidade de limita\u00e7\u00e3o e controle dos abusos de poder do pr\u00f3prio Estado e de suas autoridades constitu\u00eddas e a consagra\u00e7\u00e3o dos princ\u00edpios b\u00e1sicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e contempor\u00e2neo [40] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Conv\u00e9m ainda citar a ideia trazida por Uadi Lamm\u00eago Bulos:<\/p>\n
\nOs direitos fundamentais <\/em>s\u00e3o conhecidos sob os mais diferentes r\u00f3tulos, tais como direitos humanos fundamentais<\/em>, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos p\u00fablicos subjetivos, direitos naturais, liberdades fundamentais, liberdades p\u00fablicas etc.<\/p>\nSugerimos o uso de liberdades p\u00fablicas<\/em> em sentido amplo \u2013 conjunto de normas constitucionais que consagram limita\u00e7\u00f5es jur\u00eddicas aos Poderes P\u00fablicos, projetando-se em tr\u00eas dimens\u00f5es: civil (direitos da pessoa humana), pol\u00edtica (direitos de participa\u00e7\u00e3o na ordem democr\u00e1tica) e econ\u00f4mico-social (direitos econ\u00f4micos e sociais) [41] .<\/p>\n<\/blockquote>\nAssim, \u00e9 poss\u00edvel concluir que direitos fundamentais s\u00e3o a positiva\u00e7\u00e3o da prote\u00e7\u00e3o da dignidade da pessoa humana contra eventuais abusos do Estado.<\/p>\n
Nesse contexto, a liberdade de express\u00e3o constitui fundamental condi\u00e7\u00e3o da dignidade da pessoa humana, pois \u00e9 pressuposto para a forma\u00e7\u00e3o da personalidade, bem como da autonomia de consci\u00eancia de cada cidad\u00e3o.<\/p>\n
Nesse sentido \u00e9 a li\u00e7\u00e3o de Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto:<\/p>\n
\nA liberdade de express\u00e3o \u00e9, ainda, um imperativo da condi\u00e7\u00e3o humana. Se o que decisivamente distingue o homem no mundo das criaturas vivas \u00e9 a sua capacidade de raz\u00e3o, a realiza\u00e7\u00e3o integral da humanidade de cada pessoa implica o exerc\u00edcio de suas faculdades racionais em plenitude. Isso requer, em primeiro lugar, ter a liberdade de pensar e concluir por si pr\u00f3prio, ou seja, ter assegurado o direito \u00e0 autonomia de consci\u00eancia [42] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Ideia semelhante \u00e9 a trazida por Gilmar Mendes:<\/p>\n
\nA plenitude da forma\u00e7\u00e3o da personalidade depende de que se disponha de meios para conhecer a realidade e as suas interpreta\u00e7\u00f5es, e isso como pressuposto mesmo para que se possa participar de debates e para que se tomem decis\u00f5es relevantes. O argumento humanista, assim, acentua a liberdade de express\u00e3o como corol\u00e1rio da dignidade humana [43] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
A partir dos conceitos colacionados, \u00e9 natural que o tratamento jur\u00eddico para a liberdade de express\u00e3o, no \u00e2mbito de um Estado Democr\u00e1tico de Direito, seja o de um direito fundamental.<\/p>\n
1.5 A Liberdade de Express\u00e3o \u00e9 um direito absoluto?<\/strong><\/p>\nN\u00e3o raras s\u00e3o as vezes em que a express\u00e3o de um pensamento pode interferir em direitos de outrem. Seria o caso, por exemplo, do crime de cal\u00fania, conduta que constitui evidente les\u00e3o aos direitos \u00e0 honra e imagem daquele a quem se imputou falsamente a pr\u00e1tica de um delito.<\/p>\n
A exist\u00eancia de tais situa\u00e7\u00f5es poderia levar a crer n\u00e3o ser o direito \u00e0 livre express\u00e3o um direito absoluto, mas sim um direito relativo, sujeito \u00e0 regulamenta\u00e7\u00e3o da legisla\u00e7\u00e3o infraconstitucional, pois o crime de cal\u00fania \u00e9 previsto no C\u00f3digo Penal.<\/p>\n
Segundo Pontes de Miranda, direitos fundamentais absolutos seriam aqueles que \u201cn\u00e3o existem conforme os cria ou regula a lei; existem a despeito das leis que os pretendam modificar ou conceituar\u201d [44] . Trata-se, portanto, de um conceito jusnaturalista.<\/p>\n
Gilmar Mendes, no entanto, recha\u00e7a a exist\u00eancia de direitos fundamentais absolutos:<\/p>\n
\nPode-se ouvir, ainda, que os direitos fundamentais s\u00e3o absolutos, no sentido de se situarem no patamar m\u00e1ximo de hierarquia jur\u00eddica e de n\u00e3o tolerarem restri\u00e7\u00e3o. Tal id\u00e9ia tem premissa no pressuposto jusnaturalista de que o Estado existe para proteger direitos naturais, como a vida, a liberdade e a propriedade, que, de outro modo, estariam amea\u00e7ados. Se \u00e9 assim, todo poder aparece limitado por esses direitos e nenhum objetivo estatal ou social teria como prevalecer sobre eles. Os direitos fundamentais gozariam de prioridade absoluta sobre qualquer interesse coletivo [45] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Jos\u00e9 Afonso da Silva compartilha da opini\u00e3o de Gilmar Mendes [46] , afirmando que tal conceito n\u00e3o encontra respaldo no direito positivo. Todavia, admite ser poss\u00edvel classificar os direitos fundamentais em absolutos e relativos no \u00e2mbito do direito positivo. Para ele, direitos fundamentais absolutos seriam \u201caqueles cujo conte\u00fado e incid\u00eancia decorressem inteiramente das normas constitucionais\u201d [47] . J\u00e1 os direitos fundamentais relativos, seriam aqueles \u201ccujo conte\u00fado e incid\u00eancia somente se preencheriam conforme previs\u00e3o legal\u201d [48] .<\/p>\n
A partir deste \u00faltimo conceito, conclui-se que a liberdade de express\u00e3o jamais poderia ser considerada um direito relativo no \u00e2mbito do direito positivo.<\/p>\n
Primeiramente, porque submeter a regula\u00e7\u00e3o de seu conte\u00fado material ao legislador ordin\u00e1rio a tornaria ineficaz, conforme j\u00e1 analisado anteriormente, pois a sujeitaria \u00e0 vontade da maioria, justamente o que a prote\u00e7\u00e3o \u00e0 livre express\u00e3o visa evitar.<\/p>\n
Em segundo lugar, porque seria uma contradi\u00e7\u00e3o da pr\u00f3pria Constitui\u00e7\u00e3o, que estabelece em seu art. 220 que a manifesta\u00e7\u00e3o do pensamento n\u00e3o deve sofrer qualquer restri\u00e7\u00e3o, observando o disposto na Constitui\u00e7\u00e3o. Ou seja, a pr\u00f3pria Constitui\u00e7\u00e3o estabelece que ela, e somente ela, pode limitar a liberdade de express\u00e3o.<\/p>\n
Nesse sentido, cabe questionar a constitucionalidade do crime de cal\u00fania, bem como outros crimes e outras leis que de alguma forma limitem manifesta\u00e7\u00e3o do pensamento.<\/p>\n
\nN\u00e3o se compreenderia que a amea\u00e7a e a cal\u00fania constitu\u00edssem, no comum das legisla\u00e7\u00f5es nacionais, atos comunicativos pun\u00edveis como crime se a norma constitucional da liberdade de express\u00e3o fosse entendida no sentido de tornar incensur\u00e1veis todas e quaisquer esp\u00e9cies de comunica\u00e7\u00e3o, independentemente de suas finalidades e efeitos. Se assim se entendesse, a lei penal que as proibisse, por ser inferior \u00e0 Constitui\u00e7\u00e3o, teria de ser declarada inv\u00e1lida. Quem amea\u00e7asse ou caluniasse estaria apenas no regular exerc\u00edcio de um direito [49] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
A resposta a este questionamento, na realidade, est\u00e1 na pr\u00f3pria Constitui\u00e7\u00e3o. Quando esta estabelece que o exerc\u00edcio da livre express\u00e3o est\u00e1 sujeito ao disposto na Constitui\u00e7\u00e3o, resta claro estar limitado \u00e0quilo que n\u00e3o viole nenhum outro direito fundamental nela positivado. Afinal, n\u00e3o existe direito que permita a viola\u00e7\u00e3o de outros direitos.<\/p>\n
Assim, a tipifica\u00e7\u00e3o do crime de cal\u00fania, por exemplo, n\u00e3o \u00e9 uma limita\u00e7\u00e3o infraconstitucional ao direito \u00e0 liberdade de express\u00e3o. Na realidade, a conduta tipificada \u00e9 um ato de comunica\u00e7\u00e3o que n\u00e3o \u00e9 protegido pelo direito \u00e0 livre express\u00e3o, justamente por violar outros direitos constitucionais \u2013 no caso, o direito \u00e0 honra.<\/p>\n
1.6 O \u00e2mbito de prote\u00e7\u00e3o da Liberdade de Express\u00e3o<\/strong><\/p>\nPreliminar \u00e0 an\u00e1lise de qualquer conflito envolvendo um direito fundamental \u00e9 necess\u00e1rio que se delimite o seu \u00e2mbito de prote\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
Gilmar Mendes conceitua o \u00e2mbito de prote\u00e7\u00e3o de um direito fundamental como \u201cos diferentes pressupostos f\u00e1ticos e jur\u00eddicos contemplados na norma jur\u00eddica (v. g., reunir-se sob determinadas condi\u00e7\u00f5es) e a conseq\u00fc\u00eancia comum, a prote\u00e7\u00e3o fundamental\u201d [50] .<\/p>\n
Em sentido similar \u00e9 a li\u00e7\u00e3o de Jos\u00e9 Joaquim Gomes Canotilho:<\/p>\n
\nSignifica a delimita\u00e7\u00e3o intensional e extensional dos bens, valores e interesses protegidos por uma norma. Este \u00e2mbito \u00e9, tendencialmente, o resultado proveniente da delimita\u00e7\u00e3o dogm\u00e1tica feita pelos \u00f3rg\u00e3os ou sujeitos concretizadores atrav\u00e9s do confronto de normas do direito vigente [51] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
O \u00e2mbito de prote\u00e7\u00e3o do direito \u00e0 liberdade de express\u00e3o se delimita justamente quando analisado em conjunto com as demais disposi\u00e7\u00f5es constitucionais [52] .<\/p>\n
Nesse sentido, Gilmar Mendes assevera:<\/p>\n
\nA garantia da liberdade de express\u00e3o tutela, ao menos enquanto n\u00e3o houver colis\u00e3o com outros direitos fundamentais e com outros valores constitucionalmente estabelecidos, toda opini\u00e3o, convic\u00e7\u00e3o, coment\u00e1rio, avalia\u00e7\u00e3o ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse p\u00fablico, ou n\u00e3o, de import\u00e2ncia e de valor, ou n\u00e3o \u2014 at\u00e9 porque \u201cdiferenciar entre opini\u00f5es valiosas ou sem valor \u00e9 uma contradi\u00e7\u00e3o num Estado baseado na concep\u00e7\u00e3o de uma democracia livre e pluralista\u201d [53] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Equivalente \u00e9 a li\u00e7\u00e3o de Alexandre de Moraes:<\/p>\n
\nA liberdade de express\u00e3o constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democr\u00e1tica e compreende n\u00e3o somente as informa\u00e7\u00f5es consideradas como inofensivas, indiferentes ou favor\u00e1veis, mas tamb\u00e9m aquelas que possam causar transtornos, resist\u00eancia, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe a partir da consagra\u00e7\u00e3o do pluralismo de id\u00e9ias e pensamentos, da toler\u00e2ncia de opini\u00f5es e do esp\u00edrito aberto ao di\u00e1logo [54] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Destes conceitos extrai-se a ideia de a Constitui\u00e7\u00e3o n\u00e3o limita a prote\u00e7\u00e3o da liberdade de express\u00e3o quanto ao seu valor, qualidade ou simpatia, mas sim quando h\u00e1 viola\u00e7\u00e3o a outros direitos fundamentais.<\/p>\n
Ent\u00e3o, conclui-se que o \u00e2mbito de prote\u00e7\u00e3o da liberdade de express\u00e3o do pensamento \u00e9 toda forma de comunica\u00e7\u00e3o que n\u00e3o conflite com o restante da Constitui\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
1.7 A Liberdade de Express\u00e3o e seus conflitos<\/strong><\/p>\nA maior dificuldade em se analisar a extens\u00e3o do direito \u00e0 liberdade de express\u00e3o est\u00e1 nas situa\u00e7\u00f5es em que ocorre conflito com algum dos demais direitos constitucionais.<\/p>\n
Exemplificando: se A expressa uma opini\u00e3o sobre B e B sente que sua imagem foi lesada pela opini\u00e3o de A, qual direito fundamental deve prevalecer: o direito \u00e0 livre express\u00e3o de A ou o direito \u00e0 imagem de B?<\/p>\n
Na obra Teoria do Ordenamento Jur\u00eddico, Norberto Bobbio analisa os tr\u00eas principais problemas decorrentes da rela\u00e7\u00e3o entre diversas normas: a unidade, a coer\u00eancia e a completude. Ao analisar o problema da coer\u00eancia, Bobbio analisa as antinomias [55] , conceito dado \u00e0s incompatibilidades entre normas de um mesmo ordenamento.<\/p>\n
Para a resolu\u00e7\u00e3o das antinomias, Bobbio prop\u00f5e a utiliza\u00e7\u00e3o de tr\u00eas crit\u00e9rios: crit\u00e9rio cronol\u00f3gico (lex posterior derogat priori<\/em>), crit\u00e9rio hier\u00e1rquico (lex superior derogat inferiori<\/em>) e crit\u00e9rio da especialidade (lex specialis derogat generali<\/em>). O crit\u00e9rio cronol\u00f3gico \u00e9 aquele no qual \u201centre duas normas incompat\u00edveis, prevalece a norma posterior\u201d [56] . O crit\u00e9rio hier\u00e1rquico, por seu turno, \u00e9 aquele no qual \u201cprevalece a norma hierarquicamente superior\u201d [57] . Por fim, o crit\u00e9rio da especialidade \u00e9 aquele pelo qual \u201cde duas normas incompat\u00edveis, uma geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda\u201d [58] .<\/p>\nTodavia, os crit\u00e9rios estabelecidos por Bobbio s\u00e3o insuficientes para a resolu\u00e7\u00e3o de um conflito entre normas de uma Constitui\u00e7\u00e3o, visto que n\u00e3o h\u00e1 diferen\u00e7a de cronologia, hierarquia ou especialidade entre elas.<\/p>\n
Com a evolu\u00e7\u00e3o do positivismo jur\u00eddico e da hermen\u00eautica constitucional, surgiram novas teorias para a resolu\u00e7\u00e3o desse tipo de conflito. Atualmente, a mais conhecida e amplamente utilizada pelo judici\u00e1rio brasileiro \u00e9 o m\u00e9todo da pondera\u00e7\u00e3o, cujo maior expoente \u00e9 o alem\u00e3o Robert Alexy.<\/p>\n
Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, faz distin\u00e7\u00e3o entre regras e princ\u00edpios, sendo ambos esp\u00e9cies do g\u00eanero norma jur\u00eddica [59] . Segundo o autor, princ\u00edpios s\u00e3o \u201cnormas que ordenam que algo seja realizado na maior medida poss\u00edvel dentro das possibilidades jur\u00eddicas e f\u00e1ticas existentes\u201d [60] . J\u00e1 as regras s\u00e3o \u201cnormas que s\u00e3o sempre ou satisfeitas ou n\u00e3o satisfeitas\u201d [61] e, por isso, s\u00e3o \u201cdetermina\u00e7\u00f5es no \u00e2mbito daquilo que \u00e9 f\u00e1tica e juridicamente poss\u00edvel\u201d [62] .<\/p>\n
A partir desses conceitos, Alexy tamb\u00e9m formula solu\u00e7\u00f5es distintas para o conflito entre regras e o conflito entre princ\u00edpios.<\/p>\n
Na teoria de Alexy, o conflito entre regras seria resolvido por meio de uma exce\u00e7\u00e3o inserida em uma das normas ou pela declara\u00e7\u00e3o de invalidade de uma das normas:<\/p>\n
\nUm conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cl\u00e1usula de exce\u00e7\u00e3o que elimine o conflito, ou pelo menos uma das regras for declarada inv\u00e1lida. [\u2026] Se esse tipo de solu\u00e7\u00e3o n\u00e3o for poss\u00edvel, pelo menos uma das regras tem que ser declarada inv\u00e1lida e, com isso, extirpada do ordenamento jur\u00eddica [63] [64] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
O conflito entre princ\u00edpios, por seu turno, \u00e9 resolvido de forma distinta. Alexy afirma que um dos princ\u00edpios dever\u00e1 prevalecer, o que s\u00f3 pode ser decidido de acordo com cada caso concreto:<\/p>\n
\nAs colis\u00f5es entre princ\u00edpios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princ\u00edpios colidem \u2013 o que ocorre, por exemplo, quando algo \u00e9 proibido de acordo com um princ\u00edpio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princ\u00edpios ter\u00e1 que ceder. Isso n\u00e3o significa, contudo, nem que o princ\u00edpio cedente deva ser declarado inv\u00e1lido, nem que nele dever\u00e1 ser introduzida uma cl\u00e1usula de exce\u00e7\u00e3o [65] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Sobre a teoria de Alexy, discorrem Luiz Henrique Urquhart Cademartori e Argemiro Cardoso Moreira Martins:<\/p>\n
\nEm s\u00edntese, considerados prima facie<\/em>, os princ\u00edpios, considerados esp\u00e9cie de normas, junto com as regras, apresentam-se no ordenamento constitucional sob o mesmo peso hier\u00e1rquico, sendo que a sua colis\u00e3o somente ocorre nos casos concretos, quando um princ\u00edpio limita a irradia\u00e7\u00e3o de efeitos do outro [66] .<\/p>\n<\/blockquote>\nAssim, Alexy formula o m\u00e9todo da pondera\u00e7\u00e3o de princ\u00edpios, que consiste no \u201cestabelecimento de uma rela\u00e7\u00e3o de preced\u00eancia condicionada entre os princ\u00edpios, com base nas circunst\u00e2ncias do caso concreto\u201d [67] .<\/p>\n
Essa teoria, apesar de amplamente utilizada, tem sido criticada por outros te\u00f3ricos da hermen\u00eautica constitucional.<\/p>\n
Um dos principais cr\u00edticos de Alexy \u00e9 J\u00fcrgen Habermas. Habermas critica a teoria de Alexy por interpretar princ\u00edpios como se fossem valores. Segundo ele, essa concep\u00e7\u00e3o \u00e9 equivocada, pois \u201cprinc\u00edpios s\u00e3o normas mais elevadas, em cuja luz outras normas podem ser justificadas, possuem um sentido deontol\u00f3gico, ao passo que os valores t\u00eam sentido teleol\u00f3gico\u201d [68] .<\/p>\n
Habermas fundamenta esta ideia, afirmando que valores expressam prefer\u00eancias desej\u00e1veis \u00e0 coletividade, ao passo que as normas \u2013 inclusos os princ\u00edpios \u2013 imp\u00f5em uma obriga\u00e7\u00e3o, motivo pelo qual n\u00e3o podem ser tratados da mesma forma:<\/p>\n
\nPortanto, normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, atrav\u00e9s de suas respectivas refer\u00eancias ao agir obrigat\u00f3rio ou teleol\u00f3gico; em segundo lugar, atrav\u00e9s da codifica\u00e7\u00e3o bin\u00e1ria ou gradual de sua pretens\u00e3o de validade; em terceiro lugar, atrav\u00e9s de sua obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, atrav\u00e9s dos crit\u00e9rios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores deve satisfazer. Por se distinguirem segundo essas qualidades l\u00f3gicas, eles n\u00e3o podem ser aplicados da mesma maneira [69] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
O constitucionalista Friedrich M\u00fcller tamb\u00e9m critica a redu\u00e7\u00e3o dos direitos fundamentais a meros valores, conforme exp\u00f5e Paulo Bonavides:<\/p>\n
\nTratando-se de interpretar direitos fundamentais, cabe, por derradeiro, a indaga\u00e7\u00e3o decisiva: \u00e9 o direito fundamental valor ou norma?<\/p>\n
Eis a quest\u00e3o prec\u00edpua. Friedrich M\u00fcller a levanta precisamente ao ocupar-se da hermen\u00eautica constitucional dos direitos fundamentais. Sua resposta, por\u00e9m, \u00e9 de todo o ponto negativa. Segundo ele, os direitos humanos \u2013 em nossa terminologia designados preferencialmente por direitos fundamentais \u2013 n\u00e3o s\u00e3o \u201cvalores\u201d, s\u00e3o \u201cnormas\u201d, e quando a Constitui\u00e7\u00e3o os positiva se tornam direitos vigentes (geltendes Recht<\/em>).<\/p>\nConcluir o insigne Mestre que o dever do jurista \u00e9, portanto, interpret\u00e1-los como normas, e quem assim n\u00e3o o faz, insistindo em tom\u00e1-los hermeneuticamente por \u201cvalores\u201d em verdade os \u201cdes-valoriza\u201d (ent-wertetsie gerade<\/em>) [70] .<\/p>\n<\/blockquote>\nA grande cr\u00edtica de Habermas \u00e9 ao fato de a aplica\u00e7\u00e3o da teoria da pondera\u00e7\u00e3o dos princ\u00edpios conferir total discricionariedade ao julgador em caso de colis\u00e3o entre princ\u00edpios, pois ao serem tratados como valores \u2013 ou seja, prefer\u00eancias desej\u00e1veis \u00e0 coletividade -, qualquer raz\u00e3o pode ser utilizada como fundamenta\u00e7\u00e3o:<\/p>\n
\nAo deixar-se conduzir pela ideia da realiza\u00e7\u00e3o de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa inst\u00e2ncia autorit\u00e1ria. No caso de uma colis\u00e3o, todas <\/em>as raz\u00f5es podem assumir o car\u00e1ter de argumentos de coloca\u00e7\u00e3o de objetivos, o que faz ruir a viga mestra introduzida no discurso jur\u00eddico pela compreens\u00e3o deontol\u00f3gica de normas e princ\u00edpios do direito. [\u2026] Na medida em que um tribunal constitucional adota a doutrina da ordem de valores e a toma como base de sua pr\u00e1tica de decis\u00e3o, cresce o perigo dos ju\u00edzos irracionais, porque, neste caso, os argumentos funcionalistas prevalecem sobre os normativos [71] .<\/p>\n<\/blockquote>\nM\u00fcller compartilha desta cr\u00edtica de Habermas. Para ele, o m\u00e9todo da pondera\u00e7\u00e3o \u201c\u00e9 question\u00e1vel em v\u00e1rios aspectos, n\u00e3o se considerando de modo algum as obje\u00e7\u00f5es existentes do direito de Estado contra a inseguran\u00e7a jur\u00eddica associada \u00e0 pondera\u00e7\u00e3o de bens e contra o risco de ju\u00edzos de valores subjetivos\u201d [72] .<\/p>\n
M\u00fcller alerta ainda:<\/p>\n
\nA teoria da pondera\u00e7\u00e3o de princ\u00edpios] n\u00e3o forneceu \u00e0 pr\u00e1tica quase nenhuma indica\u00e7\u00e3o \u00fatil de como as entidades a serem ponderadas poderiam ser racionalmente circunscritas e avaliadas em seu \u201cpeso\u201d de uma forma comprov\u00e1vel e realmente pass\u00edvel de ser discutida entre os indiv\u00edduos [73] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
No sentido contr\u00e1rio da teoria de Alexy, Habermas defende que os direitos fundamentais n\u00e3o se sujeitam a uma an\u00e1lise valorativa quando \u201clevados a s\u00e9rio em seu sentido deontol\u00f3gico\u201d [74] . Habermas afirma que, na realidade, deve ser escolhida a norma mais adequada ao caso:<\/p>\n
\nNo caso de colidirem com outras prescri\u00e7\u00f5es jur\u00eddicas, n\u00e3o h\u00e1 necessidade de uma decis\u00e3o para saber em que medida valores concorrentes s\u00e3o realizados. Como foi mostrado, a tarefa consiste, ao inv\u00e9s disso, em encontrar entre as normas aplic\u00e1veis prima facie <\/em>aquela que se adapta melhor \u00e0 situa\u00e7\u00e3o de aplica\u00e7\u00e3o descrita de modo possivelmente exaustivo e sob todos os pontos de vista relevantes [75] .<\/p>\n<\/blockquote>\nImportante destacar que, segundo Habermas, decidir sobre a adequa\u00e7\u00e3o de uma norma a um caso concreto n\u00e3o se confunde com decidir sobre a sua validade, visto que esta se refere \u00e0 justifica\u00e7\u00e3o de uma norma, enquanto que a adequa\u00e7\u00e3o se refere \u00e0 sua aplica\u00e7\u00e3o [76] .<\/p>\n
Tal ideia tem origem na teoria dos discursos de Klaus G\u00fcnther, que diferencia os discursos de justifica\u00e7\u00e3o de norma dos discursos de sua aplica\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
Sobre o tema, lecionam Luiz Henrique Urquhart Cademartori e Argemiro Cardoso Moreira Martins:<\/p>\n
\nA tese desenvolvida por G\u00fcnther \u00e9 que a justifica\u00e7\u00e3o de normas e a aplica\u00e7\u00e3o de normas, sejam elas regras ou princ\u00edpios, t\u00eam objetivos distintos e s\u00e3o orientadas por princ\u00edpios norteadores espec\u00edficos [77] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Segundo G\u00fcnther, \u201csomente se o nosso saber abrangesse todos os casos de aplica\u00e7\u00e3o de uma norma \u00e9 que far\u00edamos coincidir o ju\u00edzo sobre a validade da norma com o ju\u00edzo sobre a adequa\u00e7\u00e3o\u201d [78] .<\/p>\n
No caso do conflito entre a liberdade de express\u00e3o e outro princ\u00edpio fundamental da Constitui\u00e7\u00e3o, a diferen\u00e7a entre as teorias de Alexy e Habermas torna-se bastante evidente.<\/p>\n
Tomando como exemplo um hipot\u00e9tico conflito entre a liberdade de express\u00e3o e o direito \u00e0 honra, a teoria de Alexy levaria o julgador a decidir uma preced\u00eancia entre um dos princ\u00edpios em um caso concreto. J\u00e1 a teoria de Habermas, faria o julgador verificar qual dos princ\u00edpios \u00e9 aplic\u00e1vel ao caso concreto.<\/p>\n
A teoria de Habermas parece mais adequada ao \u00e2mbito de prote\u00e7\u00e3o da liberdade de express\u00e3o, que, conforme j\u00e1 exposto, \u00e9 toda forma de comunica\u00e7\u00e3o n\u00e3o conflitante com o restante da Constitui\u00e7\u00e3o. Assim, o julgador deve verificar se houve ofensa \u00e0 honra. Se houve, o direito \u00e0 honra \u00e9 a norma a ser aplicada; se n\u00e3o houve, aplica-se a norma referente \u00e0 liberdade de express\u00e3o.<\/p>\n
Deste modo, conclui-se que o conflito entre os direitos fundamentais \u00e9 apenas aparente, pois apesar de serem ambos aplic\u00e1veis prima facie<\/em>, ap\u00f3s a an\u00e1lise jur\u00eddica, apenas um deles \u00e9 o adequado.<\/p>\n2 O POLITICAMENTE CORRETO<\/strong><\/p>\n2.1 Conceitua\u00e7\u00e3o do politicamente correto<\/strong><\/p>\nO politicamente correto se tornou um tema de bastante destaque nos \u00faltimos tempos. Casos como o do humorista Danilo Gentili [79] , que fez piada sobre a rejei\u00e7\u00e3o da popula\u00e7\u00e3o de Higien\u00f3polis \u00e0 implementa\u00e7\u00e3o de um metr\u00f4 no bairro, dizendo que \u201ca \u00faltima vez que eles chegaram perto de um vag\u00e3o, foram parar em Auschwitz\u201d, em alus\u00e3o \u00e0 grande quantidade de judeus no bairro, provocaram o desgosto de muitos e causaram grande repercuss\u00e3o na m\u00eddia.<\/p>\n
A repercuss\u00e3o quanto ao tema fez com que diversos jornalistas e colunistas escrevessem sobre o tema [80] , e gerou inclusive livros, como O Guia Politicamente Incorreto da Hist\u00f3ria do Brasil<\/em>, que se tornou sucesso de vendas.<\/p>\nNo entanto, apesar de ser um assunto muito comentado, dificilmente h\u00e1 uma defini\u00e7\u00e3o do que afinal significa a express\u00e3o \u201cpoliticamente correto\u201d.<\/p>\n
Segundo Geoffrey Hughes, pesquisador de hist\u00f3ria lingu\u00edstica:<\/p>\n
\nO politicamente correto n\u00e3o \u00e9 apenas uma coisa e n\u00e3o tem uma hist\u00f3ria simples. Como um conceito, ele precede o debate e \u00e9 um fen\u00f4meno complexo, descont\u00ednuo e multiforme que mudou radicalmente, mesmo sobre as duas \u00faltimas d\u00e9cadas. Durante apenas este tempo, ele se ramificou a partir das suas preocupa\u00e7\u00f5es iniciais com a educa\u00e7\u00e3o e o curr\u00edculo em agendas diversas, reformas, e quest\u00f5es relativas \u00e0 ra\u00e7a, cultura, g\u00eanero, defici\u00eancia, meio ambiente e direitos dos animais [81] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
O politicamente correto, \u00e9 na realidade, muito anterior ao que estamos acostumados a atribuir a esta express\u00e3o, mas seu significado foi se alterando ao longo do tempo.<\/p>\n
Nesse sentido \u00e9 a li\u00e7\u00e3o dos historiadores Peter Duignan e L. H. Gann:<\/p>\n
\nO politicamente correto existia nas universidades americanas muito antes do atual movimento que se tornou modismo, de acordo com o conhecido analista pol\u00edtico Seymor Martin Lipset. Ele observa que as escolas religiosas contratavam e demitiam professores por seus pontos de vista e aceita\u00e7\u00e3o da doutrina da igreja at\u00e9 ap\u00f3s a Segunda Guerra Mundial [82] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
A pr\u00f3pria origem do termo \u00e9 controversa. H\u00e1 quem defenda que o termo foi cunhado por movimentos de esquerda:<\/p>\n
\nO politicamente correto \u00e9 um \u201cramo\u201d do pensamento de esquerda americano. Se pensarmos no contexto onde ele nasceu, veremos a ascens\u00e3o social dos negros americanos no final dos anos 60. Fen\u00f4meno semelhante aos gays a partir dos anos 80 [83] .<\/p>\n
P.C. surgiu de um movimento pol\u00edtico situado nos campi universit\u00e1rios e de institui\u00e7\u00f5es pol\u00edticas ou culturais \u2018alternativas\u2019, por exemplo: de esquerda, feministas, organiza\u00e7\u00f5es anti-racistas ou ambientalistas [84] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Em contrapartida, h\u00e1 tamb\u00e9m a ideia de que, na verdade, \u201co termo \u2018politicalmente correto\u2019 foi cunhado pelos detratores e n\u00e3o pelos defensores da posi\u00e7\u00e3o que assim \u00e9 retratada\u201d [85] e que \u201cningu\u00e9m afirma ser politicamente correto\u201d [86] , j\u00e1 que esta seria um termo pejorativo.<\/p>\n
Nesse sentido, leciona Marilyn Friedman:<\/p>\n
\nO politicamente correto (PC) compreende uma s\u00e9rie de reformas acad\u00eamicas e atitudes que, segundo seus cr\u00edticos, est\u00e3o a destruir o ensino superior e amea\u00e7ando a sobreviv\u00eancia nacional. O suposto culpado \u00e9 a esquerda acad\u00eamica, um grupo que engloba as feministas, multiculturalistas, marxistas e desconstrucionistas. Em seu ensino e escolaridade, esses acad\u00eamicos esquerdistas supostamente lan\u00e7aram um ataque em grande escala sobre a civiliza\u00e7\u00e3o ocidental.<\/p>\n
Do ponto de vista da esquerda, no entanto, o quadro \u00e9 bastante diferente. As reformas em quest\u00e3o destinam-se a renovar uma s\u00e9rie de tradicionais pr\u00e1ticas acad\u00eamicas e atitudes que constituem a real mazela de ensino superior. A real corre\u00e7\u00e3o para se preocupar, a partir de uma perspectiva de esquerda, \u00e9 a \u201cretid\u00e3o\u201d dos tradicionalistas que resistem \u00e0 crescente diversidade cultural da academia hoje [87] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Entretanto, se no in\u00edcio o termo era realmente utilizado apenas pelos opositores, atualmente h\u00e1 quem o defenda. \u00c9 o caso, por exemplo, da desembargadora Maria Berenice Dias. Em seu artigo intitulado Politicamente Correto<\/em>, ela defende a substitui\u00e7\u00e3o do termo \u2018homossexualismo\u2019 por \u2018homoafetividade\u2019, por considerar aquele pejorativo, enquanto que este real\u00e7a que o aspecto mais relevante na rela\u00e7\u00e3o n\u00e3o \u00e9 a sexualidade, mas a afetividade [88] .<\/p>\nIndependentemente de qualquer controv\u00e9rsia quanto \u00e0 sua origem, o pr\u00f3prio termo pode ser considerado semanticamente equivocado, pois parte da premissa de que tudo \u00e9 pol\u00edtico, o que n\u00e3o \u00e9 necessariamente verdade:<\/p>\n
\nH\u00e1 uma atitude em rela\u00e7\u00e3o a temas como o presente para que, penso eu, obje\u00e7\u00e3o deve ser feita imediatamente, e an\u00e1lise de que servir\u00e1 como um prel\u00fadio para o resto deste ensaio. Muitas vezes \u00e9 dito hoje em dia que \u201ctudo \u00e9 pol\u00edtico\u201d, ou palavras com o mesmo efeito, e aqueles que o dizem, muitas vezes o invocam em apoio de posi\u00e7\u00f5es sobre assuntos pol\u00eamicos atualmente [89] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Segundo o fil\u00f3sofo Jan Naverson, a \u201cafirma\u00e7\u00e3o de que \u2018tudo\u2019 \u00e9 pol\u00edtico \u00e9 usado na pr\u00e1tica para apoiar um movimento para politizar, ou seja, para aumentar a incid\u00eancia do controle pol\u00edtico em algum dom\u00ednio que anteriormente n\u00e3o era tratado desta forma\u201d [90] . Naverson recha\u00e7a a ideia de que tudo \u00e9 pol\u00edtico da seguinte maneira:<\/p>\n
\nPor que algu\u00e9m iria ser tentado a supor que \u201ctudo\u201d \u00e9 pol\u00edtico? O argumento parece apelar para um argumento como este: (1) Todos os julgamentos s\u00e3o formulados em palavras, mas (2) palavras s\u00e3o artif\u00edcios sociais, e ainda (3) a sociedade \u00e9 pol\u00edtica (porque tem institui\u00e7\u00f5es pol\u00edticas, que exercem controle sobre ela).<\/p>\n
Claro que devemos considerar todas essas premissas. Mas a que conclus\u00e3o devemos chegar? Que a qu\u00edmica molecular \u00e9 realmente um ramo da pol\u00edtica, talvez? Afinal de contas, as suas conclus\u00f5es e relat\u00f3rios de evid\u00eancias s\u00e3o de fato ditos e escritos em alguma linguagem. Ou devemos argumentar que a pol\u00edtica \u00e9 na verdade um ramo da qu\u00edmica molecular, visto que tudo, incluindo os pol\u00edticos, s\u00e3o compostos de mol\u00e9culas? Melhor ainda, a afirma\u00e7\u00e3o deve ser rejeitada pelo absurdo que \u00e9 [91] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Naverson ainda afirma que essa \u201cpolitiza\u00e7\u00e3o\u201d \u00e9 utilizada para restringir o livre arb\u00edtrio das pessoas:<\/p>\n
\nPolitizar significa que em vez de ser livre para fazer o que achar melhor, as pessoas est\u00e3o agora determinadas por alguma autoridade para fazer outra coisa. Significa, ent\u00e3o, um aumento na administra\u00e7\u00e3o e um aumento de impostos ou outras imposi\u00e7\u00f5es sobre algu\u00e9m, ou em todos, para suportar os custos da politiza\u00e7\u00e3o. Acima de tudo, significa uma diminui\u00e7\u00e3o na delibera\u00e7\u00e3o volunt\u00e1ria individual e decis\u00e3o [92] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Apesar de toda a transforma\u00e7\u00e3o hist\u00f3rica e sem\u00e2ntica do termo, o politicamente correto, hoje, se caracteriza como um movimento que visa \u201cpolir a linguagem suprimindo alguns de seus preconceitos, desfazendo assim algumas injusti\u00e7as do passado ou \u2018nivelamento os lados do jogo\u2019 com a esperan\u00e7a de melhorar as rela\u00e7\u00f5es sociais\u201d [93] .<\/p>\n
Segundo Geoffrey Hughes, \u201co politicamente correto \u00e9 baseado em v\u00e1rios pressupostos idealistas sobre como a sociedade deveria funcionar, e como as pessoas deveriam se comportar umas com as outras\u201d [94] .<\/p>\n
Ideia semelhante \u00e9 exposta por Luiz Felipe Pond\u00e9:<\/p>\n
\nO politicamente correto, assim, nesse momento, se caracterizar\u00e1 por ser um movimento que busca moldar comportamentos, h\u00e1bitos, gestos e linguagem para gerar a inclus\u00e3o social desses grupos e, por tabela, combater comportamentos, h\u00e1bitos, gestos e linguagem que indiquem uma recusa dessa inclus\u00e3o [de minorias] [95] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Pond\u00e9 ainda afirma que ap\u00f3s as transforma\u00e7\u00f5es da ideia de politicamente correto ao longo do tempo, \u201co politicamente correto hoje \u00e9 muito mais amplo como fen\u00f4meno, mas sempre \u00e9 autorit\u00e1rio na sua ess\u00eancia, porque sup\u00f5e estar salvando o mundo\u201d [96] . O que autor quer dizer com esta afirma\u00e7\u00e3o, ainda que de maneira hiperb\u00f3lica, \u00e9 que os defensores do politicamente correto, por terem como pressuposto uma causa nobre, se sentem do direito de tentar limitar a liberdade daqueles considerados politicamente incorretos.<\/p>\n
Pond\u00e9 ainda assevera que:<\/p>\n
Movidos pela ideia rousseauniana de que o mais fraco politicamente \u00e9 por defini\u00e7\u00e3o melhor moralmente, o ex\u00e9rcito do politicamente correto se transformou numa grande horda da viol\u00eancia na esfera intelectual nas \u00faltimas d\u00e9cadas, criando uma verdadeira \u201ccosmologia\u201d politicamente correta \u2013 por exemplo, dizendo que Deus \u00e9 na verdade uma Deusa \u2013 a servi\u00e7o da transforma\u00e7\u00e3o do mundo no mundo que eles t\u00eam na cabe\u00e7a, muitas vezes inviabilizando qualquer possibilidade de pensar diferente [97] .<\/p>\n
A partir dessa conceitua\u00e7\u00e3o do que se entende atualmente por \u201cpoliticamente correto\u201d, cumpre analisar de que forma este movimento tem influenciado o Brasil.<\/p>\n
2.2 A influ\u00eancia do politicamente correto no poder legislativo e no poder executivo<\/strong><\/p>\nComo um movimento que visa neutralizar as formas de comunica\u00e7\u00e3o por meio de limita\u00e7\u00e3o de conduta, \u00e9 natural que o politicamente correto tenha buscado exercer a sua influ\u00eancia no Direito. Uma das formas de interfer\u00eancia do politicamente correto no Direito ocorre justamente na cria\u00e7\u00e3o de novas leis.<\/p>\n
Embora bem intencionado \u2013 afinal, a ideia do politicamente correto \u00e9 extirpar ou pelo menos reduzir preconceitos \u2013 seus resultados algumas vezes beiram ao absurdo, por tentar reduzir o livre arb\u00edtrio da popula\u00e7\u00e3o de maneira desregrada.<\/p>\n
Como exemplo, tem-se o Projeto de Lei n\u00ba 607\/2011, de autoria do Deputado Roberto de Lucena. Este projeto tem como objetivo tornar contraven\u00e7\u00e3o penal o ato de \u201cimpedir o acesso de empregados dom\u00e9sticos ou demais trabalhadores aos elevadores sociais de edif\u00edcios, quando n\u00e3o estiverem carregando carga ou objetos que, por sua natureza, devam ser transportados pelos elevadores de servi\u00e7o\u201d [98] .<\/p>\n
Como justificativa, o Deputado afirma:<\/p>\n
\nA sociedade tamb\u00e9m tem buscado o fim da discrimina\u00e7\u00e3o e do preconceito contra judeus, homossexuais, nordestinos, entre outros.<\/p>\n
E nesta luta esta Casa de Leis n\u00e3o se omitiu. S\u00e3o muitas as propostas legislativas j\u00e1 aprovadas e muitas outras que j\u00e1 foram acolhidas e tramitam visando o fim desse grande [sic] que agride a conviv\u00eancia entre as pessoas, semeando o \u00f3dio e a disc\u00f3rdia inibindo [sic] o desenvolvimento harmonioso da sociedade.<\/p>\n
Neste sentido, trago para a aprecia\u00e7\u00e3o dos Nobres Pares uma proposta que visa inibir impedir [sic] a discrimina\u00e7\u00e3o contra empregados dom\u00e9sticos e outros trabalhadores quanto ao acesso aos elevadores sociais de edifica\u00e7\u00f5es [99] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Embora o projeto tenha o objetivo de extirpar um preconceito, a inten\u00e7\u00e3o legislativa invade de maneira exagerada o livre arb\u00edtrio da popula\u00e7\u00e3o. Ainda mais se tratando de norma penal, visto que o Direito Penal tem como princ\u00edpio norteador o princ\u00edpio da interven\u00e7\u00e3o m\u00ednima [100] , pois \u00e9 a \u00faltima inst\u00e2ncia para resolu\u00e7\u00e3o de conflitos. A utiliza\u00e7\u00e3o de elevadores em um condom\u00ednio privado n\u00e3o parece um bem jur\u00eddico relevante ao ponto de ser tutelado pelo Direito Penal.<\/p>\n
A interfer\u00eancia do politicamente correto pode ser observada tamb\u00e9m no poder executivo. Um exemplo recente \u00e9 a decis\u00e3o do Conselho Nacional da Educa\u00e7\u00e3o de proibir a utiliza\u00e7\u00e3o de livros de Monteiro Lobato nas escolas, por serem considerados de cunho racista:<\/p>\n
\nEntende-se que a escolha do livro Ca\u00e7adas de Pedrinho, dentre a vasta obra liter\u00e1ria de Monteiro Lobato, como parte integrante do Programa Nacional Biblioteca da Escola segue a tradi\u00e7\u00e3o de colocar os estudantes e professores em contato com obras consideradas cl\u00e1ssicas da literatura infantil. Todavia, sendo coerentes com a pr\u00f3pria Coordena\u00e7\u00e3o-Geral de Material Did\u00e1tico do MEC, quando consultada pelo Conselho de Educa\u00e7\u00e3o do Distrito Federal sobre o tema da den\u00fancia, deve-se considerar se a ado\u00e7\u00e3o de tal livro \u00e9 coerente com os crit\u00e9rios de avalia\u00e7\u00e3o que orientam a escolha das obras: (\u2026) a qualidade textual, a adequa\u00e7\u00e3o tem\u00e1tica, a aus\u00eancia de preconceitos, estere\u00f3tipos ou doutrina\u00e7\u00f5es<\/strong>, a qualidade gr\u00e1fica e o potencial de leitura considerando o p\u00fablico-alvo <\/em> .<\/p>\n[\u2026]<\/p>\n
O alerta e a den\u00fancia em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 ado\u00e7\u00e3o desse livro e de outras obras que apresentem estere\u00f3tipos raciais devem ser entendidos como parte do processo democr\u00e1tico e integra o debate p\u00fablico e o exerc\u00edcio do controle social da educa\u00e7\u00e3o realizado pela comunidade escolar em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 pol\u00edtica e \u00e0s pr\u00e1ticas educacionais adotadas, quer seja nos n\u00edveis federal, estadual, municipal ou distrital [101] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Assim, o Conselho Nacional de Educa\u00e7\u00e3o recomendou que o Minist\u00e9rio da Educa\u00e7\u00e3o n\u00e3o selecionasse obras de teor semelhante \u00e0 obra Ca\u00e7adas de Pedrinho para o Programa Nacional Biblioteca da Escola e que, caso as selecionasse, deveria \u201cexigir da editora respons\u00e1vel pela publica\u00e7\u00e3o a inser\u00e7\u00e3o no texto de apresenta\u00e7\u00e3o de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e cr\u00edticos que discutam a presen\u00e7a de estere\u00f3tipos raciais na literatura\u201d [102] , j\u00e1 requerendo que esta provid\u00eancia fosse solicitada em rela\u00e7\u00e3o ao referido livro de Monteiro Lobato.<\/p>\n
Somente ap\u00f3s muitas cr\u00edticas o Conselho decidiu rever a sua posi\u00e7\u00e3o, emitindo o Parecer CNE\/CEB n\u00ba 06\/2011, em que a recomenda\u00e7\u00e3o de n\u00e3o selecionar a obra de Monteiro Lobato ou obras de teor similar foi suprimida e ao final foi ainda exposto que \u201cuma sociedade democr\u00e1tica deve proteger o direito de liberdade de express\u00e3o e, nesse sentido, n\u00e3o cabe veto \u00e0 circula\u00e7\u00e3o de nenhuma obra liter\u00e1ria e art\u00edstica\u201d [103] .<\/p>\n
No campo espec\u00edfico da liberdade de express\u00e3o, outro ato do poder executivo que chamou a aten\u00e7\u00e3o foi a Cartilha \u201cPoliticamente Correto e Direitos Humanos\u201d, lan\u00e7ada em 2004 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, vinculada \u00e0 Presid\u00eancia da Rep\u00fablica.<\/p>\n
Esta cartilha tinha como objetivo orientar a popula\u00e7\u00e3o a se eximir de utilizar express\u00f5es lingu\u00edsticas consideradas preconceituosas e pejorativas:<\/p>\n
\nTodos n\u00f3s \u2013 parlamentares, agentes e delegados da pol\u00edcia, guardas de tr\u00e2nsito, jornalistas, professores, entre outros profissionais com grande influ\u00eancia social \u2013 utilizamos palavras, express\u00f5es e anedotas, que, por serem t\u00e3o populares e corriqueiras, passam por normais, mas que, na verdade, mal escondem preconceitos e discrimina\u00e7\u00f5es contra pessoas ou grupos sociais. Muitas vezes ofendemos o \u201coutro\u201d por ressaltar suas diferen\u00e7as de maneira francamente grosseira e, tamb\u00e9m, com eufemismos e formas condescendentes, paternalistas [104] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Seguem alguns exemplos de express\u00f5es consideradas inadequadas pela Cartilha:<\/p>\n
\nBarbeiro \u2013 O uso da express\u00e3o, no sentido de motorista in\u00e1bil, obviamente \u00e9 ofensiva ao profissional especializado em cortar cabelo e aparar barba [105] .<\/p>\n
Beata \u2013 O termo deprecia as mulheres que v\u00e3o com muita frequ\u00eancia \u00e0s missas e of\u00edcios da Igreja Cat\u00f3lica [106] .<\/p>\n
Funcion\u00e1rio p\u00fablico \u2013 O trabalhador do Estado, que exerce ou desempenha alguma fun\u00e7\u00e3o p\u00fablica; serventu\u00e1rio. Depois de sistem\u00e1ticas campanhas de desprest\u00edgio contra o servidor p\u00fablico, iniciadas no governo Collor (1990-1992), para justificar as pol\u00edticas do Estado M\u00ednimo do modelo neoliberal, os trabalhadores dos \u00f3rg\u00e3os, entidades ou empresas p\u00fablicas preferem ser chamados de servidores p\u00fablicos. Com isso, querem enfatizar que servem ao p\u00fablico mais do que ao Estado [107] .<\/p>\n
Ladr\u00e3o \u2013 Atualmente, o termo \u00e9 mais aplicado a indiv\u00edduos pobres. Os ricos s\u00e3o preferencialmente chamados de \u201ccorruptos\u201d, o que demonstra que at\u00e9 os xingamentos t\u00eam vi\u00e9s classista [108] .<\/p>\n
Palha\u00e7o \u2013 O profissional que vive de fazer as pessoas rirem pode se ofender quando algu\u00e9m chama de \u201cpalha\u00e7o\u201d uma terceira pessoa a quem se atribui pouca seriedade a uma atitude sua [109] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Embora a referida cartilha n\u00e3o tivesse for\u00e7a normativa, tratava-se de uma orienta\u00e7\u00e3o do Governo Federal \u00e0 popula\u00e7\u00e3o, produzida \u00e0 custa dos cofres p\u00fablicos.<\/p>\n
2.3 A influ\u00eancia do politicamente correto no poder judici\u00e1rio<\/strong><\/p>\nA influ\u00eancia do politicamente correto no mundo jur\u00eddico tamb\u00e9m se revela no poder judici\u00e1rio, sobretudo com o crescimento do ativismo judicial [110] no Brasil nos \u00faltimos tempos.<\/p>\n
Nesse sentido \u00e9 a ideia trazida por Lu\u00eds Roberto Barroso:<\/p>\n
\nNos \u00faltimos anos, uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no \u00e2mbito do Legislativo tem alimentado a expans\u00e3o do Judici\u00e1rio nessa dire\u00e7\u00e3o, em nome da Constitui\u00e7\u00e3o, com a prola\u00e7\u00e3o de decis\u00f5es que suprem omiss\u00f5es e, por vezes, inovam na ordem jur\u00eddica, com car\u00e1ter normativo geral [111] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Barroso faz cr\u00edticas \u00e0 crescente interven\u00e7\u00e3o judicial nos outros poderes, que se concentram nos \u201criscos para a legitimidade democr\u00e1tica, na politiza\u00e7\u00e3o indevida da justi\u00e7a e nos limites da capacidade institucional do Judici\u00e1rio\u201d [112] .<\/p>\n
A cr\u00edtica mais relacionada ao presente trabalho \u00e9 justamente \u00e0 de politiza\u00e7\u00e3o da justi\u00e7a. Ele afirma que, embora o Direito n\u00e3o possa estar completamente desvinculado da pol\u00edtica, j\u00e1 que a pr\u00f3pria cria\u00e7\u00e3o de leis \u00e9 uma atividade essencialmente pol\u00edtica. No entanto, ele afirma que \u201cDireito n\u00e3o \u00e9<\/em> pol\u00edtica no sentido de admitir escolhas livres, tendenciosas ou partidarizadas\u201d [113] . Afirma ainda:<\/p>\n\nJu\u00edzes n\u00e3o podem ser populistas e, em certos casos, ter\u00e3o de atuar de modo contramajorit\u00e1rio. A conserva\u00e7\u00e3o e a promo\u00e7\u00e3o dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias pol\u00edticas, \u00e9 uma condi\u00e7\u00e3o de funcionamento do constitucionalismo democr\u00e1tico [114] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Todavia, a politiza\u00e7\u00e3o da Justi\u00e7a \u00e9 recorrente em diversos casos no Brasil, em muitos deles por influ\u00eancia do politicamente correto.<\/p>\n
Uma decis\u00e3o bastante emblem\u00e1tica e \u201cprovavelmente a mais significativa na hist\u00f3ria dos pronunciamentos judici\u00e1rios com respeito \u00e0 liberdade de express\u00e3o no pa\u00eds\u201d [115] \u00e9 a proferida pelo STF no Habeas Corpus n\u00ba 82.424, no qual foi negado o pedido de liberdade de Siegfried Ellwanger, acusado pela pr\u00e1tica de racismo por ter escrito um livro que questionava a veracidade do Holocausto. O livro foi considerado racista por incitar o \u00f3dio contra os judeus, mesmo que em nenhum trecho do referido livro evidencie-se tal incita\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
O pr\u00f3prio autor, no in\u00edcio de sua obra, deixa claro que sua inten\u00e7\u00e3o era fazer uma pesquisa hist\u00f3rica, o que n\u00e3o deveria ser considerado com um ato contr\u00e1rio \u00e0queles que praticam a religi\u00e3o judaica:<\/p>\n
\nQualquer cita\u00e7\u00e3o sobre Sionismo ou refer\u00eancia sobre Judeus Internacionais n\u00e3o dever\u00e1 ser considerada contra as pessoas que professam a religi\u00e3o judaica, que residem e trabalham pacificamente conosco e que cada vez menos aprovam os atos dos primeiros, por deix\u00e1-los em constante preocupa\u00e7\u00e3o [116] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
No ep\u00edlogo do livro, Siegfried reafirma que seu objetivo n\u00e3o \u00e9 depreciar o povo judaico:<\/p>\n
\nEste livro nada tem a ver com os brasileiros natos ou naturalizados que professam a religi\u00e3o judaica, que trabalham e lutam conosco por um Brasil mais unido e forte, que se destacam nos mais variados servi\u00e7os, profiss\u00f5es e fun\u00e7\u00f5es, mas que infelizmente \u00e0s vezes s\u00e3o vistos com desconfian\u00e7as, pelas tropelias e confus\u00f5es que os sionistas armam pelo mundo afora, e que s\u00f3 trazem para os pacatos praticantes judeus, apreens\u00f5es e mal-estar [117] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Ou seja, resta claro que o desagrado do autor n\u00e3o est\u00e1 relacionado ao povo judeu, mas ao movimento pol\u00edtico denominado sionismo, <\/em>o que, por si s\u00f3, j\u00e1 afasta a ideia de racismo.<\/p>\nNesse sentido foi, inclusive, o voto do Ministro Carlos Ayres Britto, um dos dois votos divergentes no caso:<\/p>\n
\nNo rigor dos conceitos, ent\u00e3o, \u00e9 praticamente imposs\u00edvel etiquetar a obra do paciente como preconceituosa, porque, para ele, preconceituoso \u00e9 o Sionismo.<\/p>\n
[\u2026]<\/p>\n
Por outro aspecto, na obra que li e reli n\u00e3o encontrei apologia \u00e0 guerra. Bem ao contr\u00e1rio (elucidativa \u00e9 a p. 43 da \u00faltima edi\u00e7\u00e3o, a esse respeito). Tampouco boicote a produtos ou pessoas de nacionalidade judaica. Muito menos o exterm\u00ednio f\u00edsico de quem quer que seja (exterm\u00ednio que o paciente nega fosse a real inten\u00e7\u00e3o de Hitler, como est\u00e1 no alto da p. 149 da 29\u00aa edi\u00e7\u00e3o). E sempre que o livro fala de condutas odientas, ou mistificadoras, ou mentirosas, \u00e9 para critic\u00e1-las [118] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Na verdade, o que condenou o escritor foi justamente o \u201ctabu\u201d popular de se falar em judeus na Segunda Guerra mundial em uma perspectiva que n\u00e3o seja a de v\u00edtima.<\/p>\n
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug faz cr\u00edtica a essa decis\u00e3o do STF, pois, segundo a autora, \u201cn\u00e3o se enfrentou de maneira direta o conflito dos direitos fundamentais existentes, qual seja, a liberdade de express\u00e3o, dignidade do povo judeu e a proibi\u00e7\u00e3o \u00e0 pr\u00e1tica de racismo\u201d [119] .<\/p>\n
Segundo Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto, tal decis\u00e3o foi um erro, que permitiu que fosse aberta \u201cuma fenda grave na prote\u00e7\u00e3o constitucional da livre express\u00e3o\u201d [120] : \u201cHoje estou convicto de que ela [a decis\u00e3o do STF] representa um erro, que se perdeu ali uma grande oportunidade de distinguir entre ideias e crimes, e n\u00e3o hesito um segundo em reunir-me \u00e0 minoria que restou vencida\u201d [121] .<\/p>\n
Meyer-Pflug tamb\u00e9m faz ressalvas \u00e0s consequ\u00eancias da decis\u00e3o. Segundo ela, \u201ch\u00e1 que se observar tamb\u00e9m com acuidade que essa decis\u00e3o do STF pode representar, em certa medida, um perigo \u00e0 liberdade de express\u00e3o, que sempre foi prestigiada no sistema constitucional brasileiro\u201d [122] .<\/p>\n
3 A INTERFER\u00caNCIA DO POLITICAMENTE CORRETO NO DIREITO \u00c0 LIVRE EXPRESS\u00c3O<\/strong><\/p>\n3.1 O politicamente correto viola o princ\u00edpio constitucional da igualdade<\/strong><\/p>\nSegundo Norberto Bobbio, o \u00fanico conceito de igualdade universalmente consagrado, qualquer que seja a Constitui\u00e7\u00e3o que esteja inserido, \u201c\u00e9 a que afirma que todos os homens s\u00e3o iguais perante a lei<\/em>, ou, com outra formula\u00e7\u00e3o, a lei \u00e9 igual para todos<\/em>\u201d [123] . A Constitui\u00e7\u00e3o Federal de 1988 n\u00e3o \u00e9 exce\u00e7\u00e3o \u00e0 regra. O art. 5\u00ba estabelece que todos s\u00e3o iguais perante a lei, sem distin\u00e7\u00e3o de qualquer natureza<\/em> [124] .<\/p>\nA igualdade perante a lei, todavia, se difere da igualdade de oportunidades, \u201cum dos pilares do Estado de democracia social\u201d [125] . Segundo Bobbio:<\/p>\n
\nO princ\u00edpio da igualdade de oportunidades, quando elevado a princ\u00edpio geral, tem com objetivo colocar todos os membros daquela determinada sociedade na condi\u00e7\u00e3o de participar da competi\u00e7\u00e3o pela vida, ou pela conquista do que \u00e9 vitalmente mais significativo, a partir de posi\u00e7\u00f5es iguais [126] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Nesse sentido, Bobbio adverte que \u201ca fim de colocar indiv\u00edduos desiguais por nascimentos nas mesmas condi\u00e7\u00f5es de partida, pode ser necess\u00e1rio favorecer os mais pobres e desfavorecer os mais ricos\u201d [127] . Assim, \u201cuma desigualdade torna-se um instrumento de igualdade pelo simples motivo de que corrige uma desigualdade anterior\u201d [128] .<\/p>\n
Bobbio tamb\u00e9m distingue a igualdade perante a lei da igualdade de direito. Segundo o autor, igualdade de direito \u00e9 uma contraposi\u00e7\u00e3o \u00e0 igualdade de fato, o que corresponde \u201cquase sempre \u00e0 contraposi\u00e7\u00e3o entre igualdade formal e igualdade substancial ou material\u201d [129] .<\/p>\n
O autor ainda conceitua a igualdade de fato como: \u201cigualdade com rela\u00e7\u00e3o aos bens materiais, ou igualdade econ\u00f4mica, que \u00e9 assim diferenciada da igualdade formal ou jur\u00eddica e da igualdade de oportunidades ou social\u201d [130] .<\/p>\n
No contexto brasileiro, importante salientar que a Constitui\u00e7\u00e3o garante a igualdade perante o Estado, quando estabelece a igualdade perante \u00e0 lei no art. 5\u00ba, e quando veda ao pr\u00f3prio Estado diferenciar os indiv\u00edduos, conforme o art. 19, III, que disp\u00f5e ser vedado \u00e0 Uni\u00e3o, estados e munic\u00edpios criar distin\u00e7\u00f5es entre brasileiros ou prefer\u00eancias entre si<\/em> [131] . Deste modo a Constitui\u00e7\u00e3o brasileira garante a igualdade formal.<\/p>\nExtrai-se da li\u00e7\u00e3o de Manoel Gon\u00e7alves Ferreira Filho:<\/p>\n
\nJuridicamente, como ensina Colliard, pode-se distinguir a igualdade de direitos, ou igualdade civil, da igualdade de fato, ou igualdade real. [\u2026] Aquela \u00e9 a forma de igualdade consagrada constitucionalmente nas democracias ocidentais. Mant\u00e9m aberta a possibilidade de distin\u00e7\u00f5es, mas de distin\u00e7\u00f5es que decorram do valor pessoal. De fato, a igualdade civil rejeita os privil\u00e9gios de ra\u00e7a, cor, religi\u00e3o, sexo e nascimento [132] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Com rela\u00e7\u00e3o \u00e0 igualdade de fato, ou igualdade formal, a quest\u00e3o \u00e9 mais complexa. A Constitui\u00e7\u00e3o estabelece em seu art. 3\u00ba, III, como objetivo da Rep\u00fablica reduzir as desigualdades. Entretanto, em nenhum momento a Constitui\u00e7\u00e3o disp\u00f5e que todos os indiv\u00edduos dever\u00e3o ser materialmente iguais. Na realidade, ela nem poderia, pois esta seria uma contradi\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
Isto porque, apesar de a Constitui\u00e7\u00e3o estabelecer que o Brasil \u00e9 uma democracia social, fundada na fun\u00e7\u00e3o social da propriedade na promo\u00e7\u00e3o da justi\u00e7a social, disp\u00f5e tamb\u00e9m ser uma na\u00e7\u00e3o de economia de livre-mercado, fundada na livre iniciativa, conforme preconiza os art. 1\u00ba, IV, e o art. 170.<\/p>\n
Extrai-se li\u00e7\u00e3o de Alexandre de Moraes:<\/p>\n
\nA ordem econ\u00f4mica constitucional (CF, arts. 170 a 181), fundada na valoriza\u00e7\u00e3o do trabalho humano e na livre iniciativa, assegura a todos o livre exerc\u00edcio de qualquer atividade econ\u00f4mica, independentemente de autoriza\u00e7\u00e3o de \u00f3rg\u00e3os p\u00fablicos, salvo nos casos expressamente previstos em lei e tem por fim assegurar a todos, exist\u00eancia digna, conforme os ditames da justi\u00e7a social, observados os princ\u00edpios previstos no art. 170 [133] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Em qualquer sociedade que se baseie na livre iniciativa, ou seja, em que o Estado n\u00e3o tem monop\u00f3lio da atividade econ\u00f4mica, \u00e9 inevit\u00e1vel que alguns cidad\u00e3os, por serem naturalmente mais aptos e criativos, tenham mais sucesso profissional e acumulem mais riqueza.<\/p>\n
Nesse sentido, leciona Luiz Felipe Pond\u00e9: \u201cQuando voc\u00ea d\u00e1 mais espa\u00e7o para a liberdade, a tend\u00eancia \u00e9 de que a democracia acentue as diferen\u00e7as entre as pessoas e os grupos que nela vivem. Mas liberdade \u00e9 a chave da capacidade criativa e empreendedora do homem\u201d [134] .<\/p>\n
\u00c9 por isso que Bobbio adverte para necessidade de uma na\u00e7\u00e3o promover a igualdade de oportunidades. E \u00e9 justamente deste modo que a Constitui\u00e7\u00e3o brasileira o faz, ao estabelecer que s\u00e3o direitos de todos e dever do Estado a educa\u00e7\u00e3o (art. 205) e a sa\u00fade (art. 196), bem como ao garantir a igualdade no trabalho (art. 7\u00ba, XXXII) e todas as igualdades estabelecidas no art. 5\u00ba (entre os sexos, religiosa, jurisdicional, etc.).<\/p>\n
O politicamente correto contraria essa ideia: visa estabelecer desigualdades desproporcionais, visando estabelecer uma igualdade de fato \u201cfor\u00e7ada\u201d.<\/p>\n
O pr\u00f3prio Bobbio, em sua obra sobre igualdade e liberdade, ainda que n\u00e3o mencione o fen\u00f4meno do politicamente correto, alerta para essa tend\u00eancia:<\/p>\n
\nA tend\u00eancia no sentido de uma igualdade cada vez maior, como j\u00e1 havia observado ou temido Tocqueville no s\u00e9culo XIX, \u00e9 irresist\u00edvel: o igualitarismo, apesar da dura resist\u00eancia que suscita em cada reviravolda da hist\u00f3ria, \u00e9 uma das grandes mola do desenvolvimento hist\u00f3rico. [\u2026] Jamais como em nossa \u00e9poca foram postas em discuss\u00e3o as tr\u00eas fontes principais de desigualdade entre os homens: a ra\u00e7a (ou, de modo mais geral, a participa\u00e7\u00e3o num grupo \u00e9tico ou nacional), o sexo e a classe social [135] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Em sentido similar assevera Ferreira Filho:<\/p>\n
\nDeve-se assinalar que atualmente o princ\u00edpio de igualdade parece em regress\u00e3o. \u00c9 ineg\u00e1vel a tend\u00eancia ao desenvolvimento de um direito de classe, que, embora para proteger o social e o economicamente fraco, lhe concede privil\u00e9gios em detrimento do princ\u00edpio de igualdade. Tamb\u00e9m se pode observar que a interven\u00e7\u00e3o do Estado no dom\u00ednio econ\u00f4mico se tem feito n\u00e3o raro ao arrepio desse princ\u00edpio [136] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
A desproporcionalidade causada pela influ\u00eancia do politicamente correto na atividade estatal se torna evidente quando um Estado interfere em demasia no livre arb\u00edtrio dos particulares, conforme exposto no Cap\u00edtulo 2, chegando ao ponto de visar tutelar o uso de elevadores em condom\u00ednios privados ou recomendar a n\u00e3o utiliza\u00e7\u00e3o de determinadas express\u00f5es lingu\u00edsticas.<\/p>\n
No \u00e2mbito da liberdade de pensamento, Luiz Felipe Pond\u00e9 assevera:<\/p>\n
\nO politicamente correto \u00e9 um caso cl\u00e1ssico de censura \u00e0 liberdade de pensamento, por isso, sob ele, o pensamento p\u00fablico fica pobre e repetitivo, por isso med\u00edocre e covarde. Quando se acentua a igualdade na democracia, amplia-se a mediocridade, porque os covardes temem a liberdade [137] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Ocorre que al\u00e9m de violar a liberdade dos particulares, o politicamente correto acaba violando o pr\u00f3prio princ\u00edpio da igualdade, justamente o valor que pretende promover. Na medida em que o Estado determina que determinadas express\u00f5es s\u00e3o permitidas e outras s\u00e3o proibidas, sem que haja efetivo conflito com outros, est\u00e1 violando o princ\u00edpio da igualdade, pois est\u00e1 permitindo que apenas alguns manifestem suas ideias.<\/p>\n
Nesse sentido \u00e9 a li\u00e7\u00e3o de Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto:<\/p>\n
\nProibir e punir o discurso sob tais bases [raz\u00f5es ideol\u00f3gicas], al\u00e9m de violar o conte\u00fado particular da liberdade de express\u00e3o, repercute negativamente sobre um princ\u00edpio mais geral da ordem constitucional, o de que as pessoas s\u00e3o iguais em dignidade e, enquanto tais, devem ser tamb\u00e9m iguais em respeito.<\/p>\n
[\u2026]<\/p>\n
Se os homens s\u00e3o iguais em dignidade e credores de igual respeito, a interdi\u00e7\u00e3o legal de determinadas ideias por raz\u00f5es de discord\u00e2ncia e contrariedade viola o princ\u00edpio. A censura de conte\u00fados particulares, nesse caso, equivale a dizer que aquele que os sustentam s\u00e3o menos dignos do que os outros, cujos pensamentos, por estarem de acordo com a ideologia estatal, recebem tratamento privilegiado, podendo circular sem constrangimentos [138] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
3.2 Quest\u00e3o de gosto versus <\/em>quest\u00e3o de direito<\/strong><\/p>\nA quest\u00e3o central do conflito entre a liberdade de express\u00e3o do pensamento e a interfer\u00eancia do politicamente correto \u00e9 justamente o fato de essa n\u00e3o ser uma quest\u00e3o relacionada ao direito, mas uma quest\u00e3o relacionada a gosto pessoal.<\/p>\n
A distin\u00e7\u00e3o entre quest\u00f5es de gosto e quest\u00f5es de direito foi analisada pela Suprema Corte dos Estados Unidos em um dos casos mais famosos envolvendo a liberdade de express\u00e3o: Hustler vs FalwellI.<\/em><\/p>\nEm sua obra Liberdade para ideias que odiamos<\/em>, o advogado e jornalista Anthony Lewis resume o caso:<\/p>\n <\/div>\n
\nO aperitivo Campari tinha publicado uma s\u00e9rie de an\u00fancios em revistas intitulados \u201ca primeira vez\u201d \u2013 a primeira vez que as pessoas retratadas provaram Campari, mas, por insinua\u00e7\u00e3o, tamb\u00e9m sua primeira rela\u00e7\u00e3o sexual. A revista Hustler<\/em> publicou o que chamava-se de um \u201can\u00fancio-par\u00f3dia\u201d dizendo que a \u201cprimeira vez\u201d do reverendo Jerry Falwell tinha sido com sua m\u00e3e em um banheirinho externo. Falwell moveu uma a\u00e7\u00e3o por difama\u00e7\u00e3o e imposi\u00e7\u00e3o intencional de sofrimento emocional [139] .<\/p>\n<\/blockquote>\nNo julgamento deste caso pela Suprema Corte, o advogado da revista Hustler, Alan L. Isaacman, sustentou que \u201ct\u00e3o in\u00fatil quando discutir sobre gosto, \u00e9 litigar isso, litigar sobre isso\u201d [140] . Nesse mesmo caso, a Suprema Corte, em sua decis\u00e3o, declarou:<\/p>\n
\nO fato de que o discurso em quest\u00e3o \u00e9 ultrajante n\u00e3o \u00e9 uma base suficiente para submet\u00ea-lo \u00e0 repara\u00e7\u00e3o por dano.<\/p>\n
Porque seguir em frente nesta base permitiria aos julgadores impor responsabiliza\u00e7\u00e3o com base em gostos ou pontos de vista e talvez com base no desgosto deles por uma express\u00e3o particular [141] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Nesse contexto se insere a cr\u00edtica de Habermas e M\u00fcller \u00e0 teoria da pondera\u00e7\u00e3o de princ\u00edpios de Robert Alexy. Ao tratar os princ\u00edpios como se fossem valores, o m\u00e9todo da pondera\u00e7\u00e3o abre margem para que o julgador pondere o conflito com base no que acha que \u00e9 melhor, ou seja, no gosto pessoal.<\/p>\n
O que o caso da revista Hustler nos ensina \u00e9 justamente o fato que o gosto ou o desgosto por uma determinada forma de express\u00e3o n\u00e3o \u00e9 fundamento jur\u00eddico para silenci\u00e1-la ou condenar quem a expressou a uma repara\u00e7\u00e3o de dano. No referido caso, a a\u00e7\u00e3o foi julgada improcedente porque a Corte considerou que n\u00e3o houve dano, j\u00e1 que a inten\u00e7\u00e3o da publica\u00e7\u00e3o era meramente c\u00f4mica e que n\u00e3o houve uma imputa\u00e7\u00e3o de fato falso ao reverendo, j\u00e1 que ningu\u00e9m poderia acreditar que aquilo era verdade.<\/p>\n
3.3 A manifesta\u00e7\u00e3o de opini\u00f5es repulsivas tamb\u00e9m merece prote\u00e7\u00e3o constitucional<\/strong><\/p>\nA maior li\u00e7\u00e3o que podemos tirar da decis\u00e3o proferida no caso Hustler vs FalwellI<\/em>, \u00e9 a de que a express\u00e3o de uma ideia, por mais repulsiva que seja, n\u00e3o pode ser reprimida a menos que viole algum direito de outrem.<\/p>\nNesse sentido \u00e9 o pensamento de Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto: \u201cSob a perspectiva do fundamento democr\u00e1tico, por exemplo, mesmo ideias que tendem a soar como aviltantes podem ter m\u00e9rito para circular livremente\u201d [142] .<\/p>\n
Ainda sobre o tema, Jo\u00e3o dos Passos exp\u00f5e:<\/p>\n
\nDe modo an\u00e1logo, o fundamento da toler\u00e2ncia n\u00e3o confere valor apenas ao bom e justo discurso das minorias e dos dissidentes contra os interesses e pr\u00e1ticas das maiorias e dos conservadores que sejam consideradas atrasadas e nefastas. D\u00e1 valor, inclusive, e talvez especialmente, ao pensamento extremista, aquele que quase qualquer um de n\u00f3s percebe como imoral e torpe, que questiona valores e ideias de consenso n\u00e3o apenas majorit\u00e1rio, mas pr\u00f3ximo do universal. [\u2026] \u00c9 mais f\u00e1cil conviver com o discurso das minorias e dissidentes quando seu conte\u00fado \u00e9 politicamente correto. Mas o sentido profundo do que seja tolerar s\u00f3 se torna realmente acess\u00edvel diante do pensamento chocante e escandaloso [143] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Esse talvez seja o ponto chave para a percep\u00e7\u00e3o de que o politicamente correto n\u00e3o pode interferir na liberdade de express\u00e3o: a prote\u00e7\u00e3o ao direito \u00e0 livre express\u00e3o \u00e9 neutra. As ideias independem de sua qualidade para poderem ser manifestadas sem que haja repress\u00e3o estatal, afinal, \u201co Estado n\u00e3o \u00e9 nem deve ser dono ou juiz da verdade\u201d [144] .<\/p>\n
Segundo Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, \u201co \u2018princ\u00edpio da neutralidade de conte\u00fado\u2019 \u00e9 uma exig\u00eancia da democracia, pois com a sua aplica\u00e7\u00e3o conferem-se os mesmos direitos \u00e0s partes conflitantes num debate\u201d [145] .<\/p>\n
Sobre o tema, exp\u00f5e Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto:<\/p>\n
\nA neutralidade do valor expressivo \u00e9 inerente \u00e0 correla\u00e7\u00e3o entre liberdade de express\u00e3o e os fundamentos de sua prote\u00e7\u00e3o. Fazer funcionar a democracia, elaborar o saber, realizar a autonomia e promover a toler\u00e2ncia s\u00e3o prop\u00f3sitos da liberdade de express\u00e3o que justificam precisamente a diversidade de informa\u00e7\u00f5es, opini\u00f5es, cren\u00e7as, sentimentos, aspira\u00e7\u00f5es, propostas. Se o valor dos atos comunicativos dependesse do tema do discurso, da filia\u00e7\u00e3o a um determinado ponto de vista, da corre\u00e7\u00e3o pol\u00edtica da opini\u00e3o, da sabedoria dos oradores ou da receptividade das maiorias, a diversidade ficaria comprometida. A democracia, o saber, a autonomia e a toler\u00e2ncia, que n\u00e3o s\u00e3o menos do que sin\u00f4nimos de diversidade, descansariam ent\u00e3o no cemit\u00e9rio das ilus\u00f5es [146] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
A toler\u00e2ncia a ideias desagrad\u00e1veis n\u00e3o s\u00f3 \u00e9 um dos valores fundamentais da democracia, como tamb\u00e9m da pr\u00f3pria Constitui\u00e7\u00e3o Federal, que em seu pre\u00e2mbulo estabelece que o Brasil \u00e9 uma sociedade pluralista. N\u00e3o h\u00e1 pluralidade sem toler\u00e2ncia e \u201cn\u00e3o se pode combater atos de intoler\u00e2ncia, com intoler\u00e2ncia\u201d [147] .<\/p>\n
Reprimir uma ideia por mera discord\u00e2ncia, na realidade, nada mais \u00e9 do que censura por raz\u00f5es ideol\u00f3gicas. Jo\u00e3o dos Passos define censura por raz\u00f5es ideol\u00f3gicas da seguinte forma:<\/p>\n
\nRaz\u00f5es ideol\u00f3gicas de censura s\u00e3o aquelas que exprimem contrariedade ou discord\u00e2ncia em rela\u00e7\u00e3o ao conte\u00fado de uma comunica\u00e7\u00e3o que apresenta valor expressivo, ou seja, cuja express\u00e3o \u00e9 justific\u00e1vel por sua conex\u00e3o com o processo democr\u00e1tico, a elabora\u00e7\u00e3o do saber, a afirma\u00e7\u00e3o da autonomia e o ensino da toler\u00e2ncia. Raz\u00f5es ideol\u00f3gicas de censura s\u00e3o aquelas que n\u00e3o est\u00e3o ligadas a uma necessidade real de prevenir e sancionar a viola\u00e7\u00e3o de direitos alheios (que n\u00e3o est\u00e3o em jogo), mas \u00e0 inten\u00e7\u00e3o de silenciar ideias e informa\u00e7\u00f5es apenas em fun\u00e7\u00e3o da prefer\u00eancia por outras, seja por acreditar-se na superioridade destas, seja para resguardar interesses contrariados (doutrin\u00e1rios, econ\u00f4micos, eleitorais, eclesi\u00e1sticos, entre outros). Raz\u00f5es ideol\u00f3gicas de censura s\u00e3o, em suma, proibi\u00e7\u00f5es estatais da palavra segundo um crit\u00e9rio de mera contrariedade ou discord\u00e2ncia [148] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Em verdade, a censura estatal por raz\u00f5es ideol\u00f3gicas \u00e9 incompat\u00edvel com a democracia. A pr\u00f3pria Constitui\u00e7\u00e3o a veda expressamente, em seu art. 220, \u00a7 2\u00ba: \u00c9 vedada toda e qualquer censura de natureza pol\u00edtica, ideol\u00f3gica e art\u00edstica<\/em> [149]. <\/em><\/p>\nAssim, o direito constitucional \u201cn\u00e3o separa em valor o pensamento argucioso e o pensamento mentecapto, o politicamente correto e o politicamente incorreto\u201d [150] , pois o valor expressivo n\u00e3o \u00e9 \u201catributo de um tipo espec\u00edfico de opini\u00e3o, a assim chamada politicamente correta, que soa bem aos outros, que n\u00e3o melindra o pudor que n\u00e3o desafia o inquestion\u00e1vel, que n\u00e3o afronta a \u00e9tica dominante\u201d [151] .<\/p>\n
3.4 A quest\u00e3o do hate speech<\/em><\/strong><\/p>\nCom rela\u00e7\u00e3o \u00e0 prote\u00e7\u00e3o constitucional a ideias consideradas repulsivas, cabe questionar: o discurso de \u00f3dio, tamb\u00e9m conhecido como hate speech<\/em>, merece prote\u00e7\u00e3o constitucional?<\/p>\nSegundo Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, discurso de \u00f3dio \u201cconsiste na manifesta\u00e7\u00e3o de ideias que incitam a discrimina\u00e7\u00e3o racial, social ou religiosa em rela\u00e7\u00e3o a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias\u201d [152] .<\/p>\n
Similar \u00e9 o conceito apresentado por Anthony Lewis: \u201cDiscurso de \u00f3dio, \u00e9 assim que ele \u00e9 chamado: ataques virulentos a judeus, negros, mu\u00e7ulmanos, homossexuais ou membros de qualquer outro grupo. \u00c9 \u00f3dio puro, n\u00e3o baseado em algum erro praticado por um indiv\u00edduo\u201d [153] .<\/p>\n
\u00c9 interessante destacar que o tratamento dado a esse tipo de discurso nos Estados Unidos \u00e9 bastante diferente do tratamento dado na Europa.<\/p>\n
Nos Estados Unidos, o discurso de \u00f3dio s\u00f3 \u00e9 reprimido quando se apresenta apto a incitar uma a\u00e7\u00e3o ilegal, ou seja, \u00e9 necess\u00e1rio que haja um perigo concreto. Nas palavras de Meyer-Pflug:<\/p>\n
\nA Suprema Corte Americana tem entendido em suas decis\u00f5es que a liberdade de express\u00e3o atinge a garantia do pr\u00f3prio conte\u00fado da express\u00e3o e exige uma rela\u00e7\u00e3o entre esta e uma poss\u00edvel a\u00e7\u00e3o ilegal iminente e potencial para que possa restringi-la. [\u2026] N\u00e3o se pune a manifesta\u00e7\u00e3o de uma ideia ou ideologia em abstrato, apenas quando ela pode representar uma a\u00e7\u00e3o concreta [154] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
J\u00e1 na Europa, a maioria dos pa\u00edses veda os discursos de \u00f3dio. Alguns pa\u00edses, por exemplo, consideram como crime a nega\u00e7\u00e3o do holocausto. Segundo Meyer-Pflug:<\/p>\n
\nO sistema europeu de prote\u00e7\u00e3o \u00e0 liberdade de express\u00e3o em grande parte n\u00e3o \u00e9 regido pelo \u201cprinc\u00edpio da neutralidade\u201d do Estado ante quaisquer conte\u00fados imagin\u00e1veis de um discurso, como ocorre no sistema americano.<\/p>\n
A B\u00e9lgica, a Alemanha, a Fran\u00e7a, a Espanha, a Holanda, a Pol\u00f4nia e a Sui\u00e7a, por exemplo, consideram crime a banaliza\u00e7\u00e3o do Holocausto.<\/p>\n
Nota-se que o Canad\u00e1 tamb\u00e9m se filiou ao modelo europeu de prote\u00e7\u00e3o da liberdade de express\u00e3o e pro\u00edbe o discurso do \u00f3dio. \u00c9 ilegal a pr\u00e1tica do racismo, anti-semitismo ou de atos xenof\u00f3bicos, como a difus\u00e3o dessas ideias [155] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Ainda sobre a diferen\u00e7a do tratamento dado ao hate speech <\/em>nos Estados Unidos e na Europa, conv\u00e9m citar as considera\u00e7\u00f5es de Anthony Lewis:<\/p>\n\nOs Estados Unidos diferem da maioria das outras sociedades ocidentais no tratamento que d\u00e3o ao discurso do \u00f3dio. Na Alemanha \u00e9 crime, e um crime grave, exibir a su\u00e1stica ou qualquer outro s\u00edmbolo nazista. Em onze pa\u00edses europeus \u00e9 crime dizer que o Holocausto n\u00e3o aconteceu, que nos anos do nazismo alem\u00e3es n\u00e3o assassinaram judeus. \u00c9 assim tamb\u00e9m no Canad\u00e1, e a Suprema Corte Canadense decidiu que os que negam o Holocausto podem ser processados e punidos, apesar de a livre express\u00e3o ser garantida pela Constitui\u00e7\u00e3o do pa\u00eds. Nos Estados Unidos, a Primeira Emenda protege o direito de negar o fato do Holocausto [156] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
No Brasil, a \u00fanica ressalva feita pela Constitui\u00e7\u00e3o \u00e0 liberdade de express\u00e3o que pode ser relacionada ao discurso de \u00f3dio \u00e9 a veda\u00e7\u00e3o ao racismo. A veda\u00e7\u00e3o ao racismo \u00e9 regulamentada pela Lei n\u00ba 7.716\/89, que tipifica diversas condutas consideradas racistas como crime.<\/p>\n
\u00c9 interessante perceber que a lei n\u00e3o incrimina o preconceito racial por si s\u00f3, mas sim atitudes provenientes deste preconceito, como a impedir o acesso de algu\u00e9m a algum estabelecimento por conta da ra\u00e7a ou a incita\u00e7\u00e3o de \u00f3dio contra determinada ra\u00e7a. Deste modo, o sistema brasileiro se aproxima muito mais do sistema norte-americano, na medida em que n\u00e3o pune a ideia racista, mas suas consequ\u00eancias.<\/p>\n
Todavia, a decis\u00e3o do STF no caso de Siegfried Ellwanger mostra uma tend\u00eancia contr\u00e1ria, criminalizando um livro que negava o holocausto por meio de uma pesquisa hist\u00f3rica, ainda que n\u00e3o houvesse de fato incita\u00e7\u00e3o ao \u00f3dio contra judeus.<\/p>\n
Conv\u00e9m ainda citar o caso anteriormente mencionado do livro de Monteiro Lobato. A obra Ca\u00e7adas de Pedrinho <\/em>em nada se parece com um discurso de \u00f3dio racial e nem corresponde a nenhuma das figuras t\u00edpicas da lei que criminaliza o racismo. Logo, a recomenda\u00e7\u00e3o do Conselho Nacional de Educa\u00e7\u00e3o para que o Minist\u00e9rio da Educa\u00e7\u00e3o n\u00e3o adquirisse a obra para o Programa Nacional Biblioteca da Escola n\u00e3o parece justific\u00e1vel.<\/p>\nSegundo Samantha Ribeirio Meyer-Pflug, a solu\u00e7\u00e3o para a quest\u00e3o do discurso de \u00f3dio no Brasil n\u00e3o passa pela ado\u00e7\u00e3o do sistema norte-americano ou do sistema europeu, mas sim um sistema pr\u00f3prio, adequado \u00e0 realidade brasileira:<\/p>\n
\nTodavia, parece que a solu\u00e7\u00e3o n\u00e3o reside na ado\u00e7\u00e3o de nenhum dos dois sistemas de forma pura. \u00c9 necess\u00e1ria a op\u00e7\u00e3o por uma posi\u00e7\u00e3o intermedi\u00e1ria ou alternativa, que se mostre adequada \u00e0 realidade cultural e hist\u00f3rica brasileira, bem como se apresente em harmonia com os princ\u00edpios constantes da Constitui\u00e7\u00e3o de 1988. A tradi\u00e7\u00e3o p\u00e1tria sempre foi no sentido de privilegiar a liberdade, a democracia, o pluralismo e a dignidade da pessoa humana e foram esses os valores amplamente prestigiados pela Constitui\u00e7\u00e3o de 1988.<\/p>\n
[\u2026]<\/p>\n
Nesse particular, a simples proibi\u00e7\u00e3o do discurso do \u00f3dio n\u00e3o parece se coadunar com os valores vigentes no sistema jur\u00eddico brasileiro, nem tem se mostrado uma solu\u00e7\u00e3o eficaz ao problema, de igual modo resolver a quest\u00e3o com a mera permiss\u00e3o desse discurso tamb\u00e9m n\u00e3o se mostra, a princ\u00edpio, compat\u00edvel [157] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Assim, podemos concluir \u00f3dio, por si s\u00f3, n\u00e3o pode ser vedado pela Constitui\u00e7\u00e3o. Sua incita\u00e7\u00e3o e a incita\u00e7\u00e3o \u00e0 viola\u00e7\u00e3o de direitos alheios por conta do \u00f3dio, no entanto, n\u00e3o s\u00e3o formas de express\u00e3o constitucionalmente protegidas.<\/p>\n
3.5 A inefic\u00e1cia do politicamente correto<\/strong><\/p>\nPor fim, interessante notar que o politicamente correto n\u00e3o alcan\u00e7a seu fim com a limita\u00e7\u00e3o da liberdade de express\u00e3o. Isto porque preconceitos n\u00e3o s\u00e3o extirpados quando a sua manifesta\u00e7\u00e3o \u00e9 impedida, mas sim quando se muda a mentalidade de quem carrega este preconceito.<\/p>\n
Nesse sentido leciona Jo\u00e3o dos Passos Martins Neto:<\/p>\n
\nEm termos pr\u00e1ticos, o controle externo sobre a mente de algu\u00e9m sequer \u00e9 algo f\u00e1cil de obter. Um homem cujos pensamentos sejam abominados pelo poder dominante pode, sob amea\u00e7a de san\u00e7\u00e3o, ser proibido de dizer o que pensa ou ser for\u00e7ado a dizer o que n\u00e3o pensa, e mesmo acatando a obriga\u00e7\u00e3o imposta para meramente salvar a pr\u00f3pria pele, ele ainda poder\u00e1, em sil\u00eancio, continuar pensando o que pensa [158] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
A melhor forma de combater uma ideia n\u00e3o \u00e9 a censura, mas a contraposi\u00e7\u00e3o com outra ideia. Se a consci\u00eancia \u00e9 incoerc\u00edvel, s\u00f3 se pode mud\u00e1-la por meio do convencimento.<\/p>\n
Nesse sentido, conv\u00e9m novamente citar o caso do livro As Ca\u00e7adas de Pedrinho<\/em>. Ao inv\u00e9s de impedir a sua utiliza\u00e7\u00e3o nas escolas, seria muito mais eficaz utiliz\u00e1-lo como artif\u00edcio pedag\u00f3gico para debater a quest\u00e3o racial.<\/p>\nUma sociedade verdadeiramente democr\u00e1tica deve garantir o debate p\u00fablico e pluralidade de ideias, como forma de que os pr\u00f3prios indiv\u00edduos selecionem as ideias que merecerem e as que n\u00e3o merecem ser levadas adiante.<\/p>\n
Similar \u00e9 a ideia exposta por Samantha Ribeiro Meyer-Pflug:<\/p>\n
\nUm Estado Constitucional deve se legitimar na opini\u00e3o p\u00fablica livre e no debate p\u00fablico plural, em um campo no qual seja aberta a discuss\u00e3o de todas as ideias. O fato de se admitir, dentro de uma sociedade democr\u00e1tica, que qualquer ideia possa ser expressada sem censura, \u00e9 fazer com que os indiv\u00edduos aprendam a exercer a sua autonomia e a escolher as ideias que devem ou n\u00e3o ser adotadas, por meio de uma discuss\u00e3o livre e aberta. \u00c9 imposs\u00edvel se falar em Estado Constitucional Democr\u00e1tico sem o reconhecimento das liberdades p\u00fablicas, precipuamente, a liberdade de express\u00e3o.<\/p>\n<\/blockquote>\n
Recorda-se a ideia exposta por John Stuart Mill, de que o mal maior em silenciar uma ideia \u00e9 causado justamente a quem discorda dela, pois impede que o discordante mude ou reafirme suas convic\u00e7\u00f5es.<\/p>\n
Sobre o pensamento de Mill, leciona Meyer-Pflug:<\/p>\n
\nPara John Stuart Mill deve o Estado assegurar a liberdade de express\u00e3o e zelar pelo debate p\u00fablico livre, pois \u00e9 elemento imprescind\u00edvel para a busca da verdade. [\u2026] A verdade vai aparecer como consequ\u00eancia natural de um debate livre e vigoroso, pois ela tem maiores chances de surgir em um debate livre e aberto, ou como ele denomina de um \u201cmercado de ideias\u201d [159] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
Jo\u00e3o dos Passos compartilha dessa ideia, afirmando que \u201cas ideias, se ruins segundo o entendimento comum, podem ser contra-atacadas com ideias acreditadas como boas\u201d [160] .<\/p>\n
O autor complementa esta ideia da seguinte forma:<\/p>\n
\nPor isso, o princ\u00edpio regulador das a\u00e7\u00f5es comunicativas \u00e9 o da liberdade plena, ou seja, o m\u00e1ximo do m\u00e1ximo de permiss\u00e3o \u00e9 o m\u00ednimo do m\u00ednimo de restri\u00e7\u00e3o. O ant\u00eddoto para o pensamento malquisto n\u00e3o deve ser o sil\u00eancio for\u00e7ado e a puni\u00e7\u00e3o do falante, mas o contra-golpe da pr\u00f3pria liberdade, isto \u00e9, mais e mais express\u00e3o [161] .<\/p>\n<\/blockquote>\n
No fundo, \u00e9 imposs\u00edvel silenciar uma ideia. O que \u00e9 poss\u00edvel silenciar \u00e9 o indiv\u00edduo que a manifesta. A ideia em si, contudo, continua existindo. Conv\u00e9m, nesse contexto, citar um dos cl\u00e1ssicos contempor\u00e2neos do cinema, o filme V de Vingan\u00e7a<\/em>, em que o protagonista diz a c\u00e9lebre frase: \u201cVoc\u00ea pode matar um homem, mas n\u00e3o pode matar uma ideia, porque ideias s\u00e3o \u00e0 prova de balas\u201d.<\/p>\nCONCLUS\u00c3O<\/strong><\/p>\nConforme exposto no presente trabalho, a liberdade como prote\u00e7\u00e3o contra a tirania do Governo n\u00e3o perdeu seu valor com o advento da democracia. Na realidade, se tornou uma prote\u00e7\u00e3o do povo contra sua pr\u00f3pria tirania. Nesse contexto, a liberdade de express\u00e3o \u00e9 um valor fundamental a ser protegido, pois uma das formas de se prevenir a tirania \u00e9 garantindo a cada cidad\u00e3o o direito de discordar dos demais.<\/p>\n
A prote\u00e7\u00e3o \u00e0 liberdade de express\u00e3o n\u00e3o \u00e9 ben\u00e9fica apenas a quem expressa determinada ideia, mas a toda coletividade, na medida em que ela promove o conhecimento e novas descobertas cient\u00edficas, bem como a cr\u00edtica pol\u00edtica, e educa a popula\u00e7\u00e3o para toler\u00e2ncia com o diferente.<\/p>\n
A livre express\u00e3o do pensamento \u00e9 uma liberdade positiva, visto que n\u00e3o se trata de algo permitido por mera aus\u00eancia de proibi\u00e7\u00e3o legal, mas sim proveniente de expressa permiss\u00e3o constitucional, sendo inclusive vedado ao Estado restringi-la. Por conta disso, \u00e9 positivada na Constitui\u00e7\u00e3o Federal como um direito fundamental.<\/p>\n
Embora n\u00e3o seja um direito em todo absoluto, visto que no direito positivo n\u00e3o existem direitos irrestritos, a livre manifesta\u00e7\u00e3o do pensamento \u00e9 um direito que s\u00f3 pode ser limitado pela pr\u00f3pria Constitui\u00e7\u00e3o, sendo este o seu \u00e2mbito de prote\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
Deste modo, na realidade, n\u00e3o h\u00e1 conflitos entre a liberdade de express\u00e3o e outros direitos fundamentais, apenas conflitos aparentes, pois na medida em que um ato comunicativo viola outro direito fundamental, este ato n\u00e3o \u00e9 protegido pelo direito \u00e0 livre express\u00e3o.<\/p>\n
Neste sentido, a teoria de Robert Alexy para resolver conflitos entre princ\u00edpios e direitos fundamentais, conhecida como m\u00e9todo da pondera\u00e7\u00e3o, apesar de amplamente utilizada pelo judici\u00e1rio brasileiro, \u00e9 ineficaz para tratar conflitos envolvendo a liberdade de express\u00e3o.<\/p>\n
Isso porque a teoria de Alexy poderia levar o julgador a decidir em um determinado caso em que n\u00e3o h\u00e1 efetiva viola\u00e7\u00e3o a outro direito que a liberdade de express\u00e3o n\u00e3o seria o direito prevalente, vez que essa teoria reduz os princ\u00edpios jur\u00eddicos a meros valores, conforme cr\u00edtica de Habermas e M\u00fcller.<\/p>\n
O politicamente correto, por seu turno, \u00e9 um fen\u00f4meno de dif\u00edcil conceitua\u00e7\u00e3o. Na realidade, \u00e9 algo mais f\u00e1cil de ser identificado na pr\u00e1tica do que de ser conceituado na teoria.<\/p>\n
\u00c9 um movimento que j\u00e1 se modificou bastante ao longo do tempo, visto que houve um tempo em que o que era considerado politicamente correto era o que estava de acordo com a doutrina religiosa.<\/p>\n
O pr\u00f3prio termo \u201cpoliticamente correto\u201d \u00e9 equivocado, por partir de uma premissa falsa: a de que tudo \u00e9 pol\u00edtico. Essa ideia tem sido utilizada justamente para limitar o livre-arb\u00edtrio das pessoas, por meio de raz\u00f5es pol\u00edticas, embora o que esteja sendo limitado n\u00e3o seja necessariamente de conte\u00fado pol\u00edtico.<\/p>\n
De todo modo, o que se entende atualmente por politicamente correto atualmente \u00e9 um movimento que visa extirpar preconceitos e promover justi\u00e7a social, por meio da neutraliza\u00e7\u00e3o da linguagem e da restri\u00e7\u00e3o a express\u00f5es lingu\u00edsticas desrespeitosas e discriminat\u00f3rias.<\/p>\n
Este movimento, todavia, tem influenciado na atividade estatal de maneira desproporcional, como, por exemplo, com a recomenda\u00e7\u00e3o do Conselho Nacional de Educa\u00e7\u00e3o de que o livro As Ca\u00e7adas de Pedrinho<\/em>, de Monteiro Lobato, n\u00e3o fosse utilizado nas escolas por ter conte\u00fado supostamente racista.<\/p>\nA interfer\u00eancia do politicamente correto tem se mostrado especialmente perigosa no poder judici\u00e1rio, com o crescente ativismo judicial. O exemplo mais emblem\u00e1tico envolvendo a liberdade de express\u00e3o \u00e9 o caso do escritor Siegfried Ellwanger, condenado pela pr\u00e1tica de racismo por escrever um livro que questionava a veracidade do holocausto, mas que em nenhum momento incita o \u00f3dio a qualquer ra\u00e7a que seja.<\/p>\n
A interfer\u00eancia do politicamente correto na liberdade de express\u00e3o \u00e9 na realidade uma viola\u00e7\u00e3o do princ\u00edpio constitucional da igualdade, vez que gera situa\u00e7\u00f5es em que o Estado autoriza ou veda a manifesta\u00e7\u00e3o de uma opini\u00e3o em raz\u00e3o de seu conte\u00fado.<\/p>\n
Percebe-se que o politicamente correto n\u00e3o \u00e9 uma quest\u00e3o de direito, mas uma quest\u00e3o de gosto pessoal. E a repress\u00e3o de uma determinada opini\u00e3o por mero desgosto configura censura por raz\u00f5es ideol\u00f3gicas, algo contr\u00e1rio ao pr\u00f3prio conceito de democracia e vedado pela Constitui\u00e7\u00e3o Federal.<\/p>\n
A prote\u00e7\u00e3o \u00e0 liberdade de express\u00e3o deve se estender at\u00e9 mesmo \u00e0s opini\u00f5es que possam ser consideradas repulsivas pela maioria, ao passo que o discurso que incita o \u00f3dio e a viola\u00e7\u00e3o de direitos deve ser punido pelo Estado.<\/p>\n
Por fim, ressalta-se que o politicamente correto \u00e9 ineficaz no fim que se prop\u00f5e, pois impedir a express\u00e3o de um determinado pensamento n\u00e3o extingue esse pensamento. O que extingue uma ideia n\u00e3o \u00e9 o sil\u00eancio, mas justamenta a sua exposi\u00e7\u00e3o, pois permite que seja desconstru\u00edda por meio da contraposi\u00e7\u00e3o com outras ideias.<\/p>\n
REFER\u00caNCIAS<\/strong><\/p>\nALEXY, Robert. Sobre a estrutura dos Princ\u00edpios Jur\u00eddicos. Revista Internacional de Direito Tribut\u00e1rio<\/strong>, Belo Horizonte, v. 3, p.155-167, jan.-jun. 2005.<\/p>\n______. Teoria dos Direitos Fundamentais.<\/strong> S\u00e3o Paulo: Malheiros, 2008.<\/p>\nBARRAL, Welber Oliveira. Metodologia da Pesquisa Jur\u00eddica.<\/strong> 2\u00aa Edi\u00e7\u00e3o. Florian\u00f3polis: Funda\u00e7\u00e3o Boiteux, 2003.<\/p>\nBARROSO, Lu\u00eds Roberto. Judicializa\u00e7\u00e3o, Ativismo Judicial e Legitimidade Democr\u00e1tica. Atualidades Jur\u00eddicas:<\/strong> Revista Eletr\u00f4nica do Conselho Federal da OAB, Bras\u00edlia, n. 4, jan.-fev. 2009. Dispon\u00edvel em: . Acesso em: 03 jun. 2012.<\/p>\nBRASIL. Constitui\u00e7\u00e3o da Rep\u00fablica Federativa do Brasil. <\/strong>Bras\u00edlia: Senado Federal, 1988.<\/p>\n______. Projeto de Lei n\u00ba 607\/2011. <\/strong>Bras\u00edlia: C\u00e2mara dos Deputados, 2011.<\/p>\n______. Projeto de Lei n\u00ba 607\/2011. <\/strong>Bras\u00edlia: C\u00e2mara dos Deputados, 2011.<\/p>\n______. Conselho Nacional de Educa\u00e7\u00e3o. Parecer CNE\/CEB n\u00ba 15\/2010. <\/strong>Bras\u00edlia, 2010.<\/p>\n______. Conselho Nacional de Educa\u00e7\u00e3o. Parecer CNE\/CEB n\u00ba 06\/2011<\/strong>. Bras\u00edlia, 2011.<\/p>\n______. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Cartilha do Politicamente Correto & Direitos Humanos. <\/strong>Bras\u00edlia, 2004.<\/p>\n______. Supremo Tribunal Federal. Argui\u00e7\u00e3o de Descumprimento de Preceito Fundamental n\u00ba 130<\/strong> . Requerente: Partido da Democr\u00e1tico Trabalhista. Bras\u00edlia, 2004.<\/strong><\/p>\n______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n\u00ba 82424\/RS<\/strong> . Impetrante: Werner Cantal\u00edcio Jo\u00e3o Becker. Paciente: Siegfried Ellwanger. Autoridade Coatora: Superior Tribunal de Justi\u00e7a. Bras\u00edlia, 2004. <\/strong><\/p>\nBOBBIO, Norberto.