{"id":5,"date":"2010-06-28T08:40:30","date_gmt":"2010-06-28T11:40:30","guid":{"rendered":"http:\/\/informago.wordpress.com\/2010\/06\/28\/dois-andares-abaixo-do-meu"},"modified":"2021-08-29T21:03:02","modified_gmt":"2021-08-30T00:03:02","slug":"dois-andares-abaixo-do-meu","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/blog.lucianoreis.com\/2010\/06\/28\/dois-andares-abaixo-do-meu\/","title":{"rendered":"Dois Andares Abaixo do Meu"},"content":{"rendered":"\n

Vejam como a jornalista Eliane Brum, colunista da revista \u00c9poca expressou de forma t\u00e3o brilhante um problema recorrente no nosso s\u00e9culo e que acontecia t\u00e3o pr\u00f3ximo a ela.<\/p>\n\n\n\n

http:\/\/revistaepoca.globo.com\/Revista\/Epoca\/0,,EMI148941-15230,00-DOIS%20ANDARES%20ABAIXO%20DO%20MEU.html<\/a><\/p>\n\n\n\n

Eu nunca tinha ouvido falar dela. Vivoo neste edif\u00edcio de 70 apartamentos h\u00e1 alguns anos. A maioria dos moradores s\u00f3 encontro na reuni\u00e3o de condom\u00ednio. H\u00e1 o velho que toma sol pela manh\u00e3 e que me cumprimenta sorridente porque l\u00e1 em casa a gente se d\u00e1 tchau na janela quando algu\u00e9m sai. Ele acha curios\u00edssimo e acompanha o ritual enternecido. H\u00e1 as mulheres que passeiam com os cachorros, e as que fiscalizam o crescimento das roseiras do jardim. Existe a vizinha que sempre tenta me vender produtos de beleza. E o Pedr\u00e3o, um aumentativo ir\u00f4nico para um cachorro t\u00e3o pequeno, t\u00e3o desmilinguido e cego pela idade, que sobe e desce o elevador comigo, protegendo com olhos err\u00e1ticos um dono que \u00e9 quase um gigante. H\u00e1 o vizinho de passo marcial que n\u00e3o cumprimenta ningu\u00e9m. E ela, que morava l\u00e1 havia uma eternidade, mas a quem eu nunca vira.<\/p>\n\n\n\n

Numa tarde v\u00eam o chaveiro, os bombeiros e a pol\u00edcia. Arrombam a porta do apartamento. E somos todos lan\u00e7ados para dentro de uma paisagem muito semelhante \u00e0 nossa, mas que era dela. As hist\u00f3rias de sua vida me alcan\u00e7am aos farrapos. Aos 82 anos ela vivia s\u00f3. Tinha sido m\u00e9dica, com consult\u00f3rio no centro de S\u00e3o Paulo. Era uma mulher independente, que veio do interior para vencer na cidade grande quando as mulheres de sua gera\u00e7\u00e3o apenas recolhiam os passos at\u00e9 a casa do marido. Viajou o mundo, falava v\u00e1rias l\u00ednguas, expressas nos livros espalhados pela casa. N\u00e3o sei de seus amores, ningu\u00e9m ali sabe. De repente, ela descobriu-se s\u00f3. N\u00e3o queria morrer, s\u00f3 n\u00e3o sabia como seguir vivendo. Resistiu viva \u2013 morrendo.<\/p>\n\n\n\n

H\u00e1 dois anos ela estacionou sua Bras\u00edlia vermelha meticulosamente limpa e bem conservada numa vaga tamanho G. E nunca mais a tirou de l\u00e1. Poderia ter sido um sinal, mas um sinal s\u00f3 se torna um sinal se for decodificado. Este gerou apenas uma multa do condom\u00ednio. O carro deveria estar numa vaga M. Talvez P. H\u00e1 pouco mais de um ano ela deixou de pagar a conta do condom\u00ednio. O ac\u00famulo da d\u00edvida virou um processo judicial e uma primeira audi\u00eancia a qual ela n\u00e3o compareceu. Outra pista n\u00e3o decifrada.<\/p>\n\n\n\n

A vizinha do lado percebeu que ela n\u00e3o mais sa\u00eda de casa. Insistiu com o s\u00edndico, com o zelador, algo estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se impregnava no corredor. Mas a lei n\u00e3o escrita da cidade grande determina n\u00e3o perturbar a privacidade de ningu\u00e9m. Cada um \u00e9 uma ilha \u2013 ou um apartamento. Propriet\u00e1rio-indiv\u00edduo de seu n\u00famero de metros quadrados a\u00e9reos no mundo. Os funcion\u00e1rios do condom\u00ednio devem avisar pelo interfone quando v\u00e3o entregar uma correspond\u00eancia que precisa ser assinada porque, do contr\u00e1rio, muitos moradores sequer abrem a porta. E ela era conhecida como \u201ca doutora\u201d, o t\u00edtulo um abismo que ela e tantos se esfor\u00e7am para cavar. Ningu\u00e9m ousou perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com ela.<\/p>\n\n\n\n

Naquela tarde a conhecida de uma associa\u00e7\u00e3o onde ela trabalhava como volunt\u00e1ria veio procur\u00e1-la, preocupada com seu sumi\u00e7o. Ela ent\u00e3o conseguiu se arrastar e sussurrar que n\u00e3o tinha for\u00e7as para abrir a porta. Quando a porta caiu, e os fossos foram transpostos, descobriu-se que havia dois meses ela vivia no escuro, \u00e0 luz de velas primeiro, nada depois. A energia el\u00e9trica tinha sido cortada por falta de pagamento. H\u00e1 semanas ela n\u00e3o comia. J\u00e1 n\u00e3o podia andar. A doutora estava morrendo de fome em meio a centenas de pessoas na cidade de milh\u00f5es. Em sua pr\u00f3pria sujeira.
Num pr\u00e9dio de classe m\u00e9dia de S\u00e3o Paulo, ela estava mais isolada que qualquer ribeirinho dos confins da Amaz\u00f4nia. N\u00e3o queria que descobrissem que havia perdido o controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, j\u00e1 n\u00e3o teve for\u00e7as. Imagino quanto desespero sentia para conseguir romper as amarras de toda uma exist\u00eancia, se arrastar at\u00e9 a porta e admitir que n\u00e3o era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora briga para viver.<\/p>\n\n\n\n

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